Maravilhosas ou terríveis, sempre belas e sedutoras as sereias preenchem o imaginário dos povos marítimos. Na mitologia grega as sereias supõem-se filhas de Aqueloo – deus do rio homónimo, um dos mais antigos e poderosos espíritos da água na Grécia – e da ninfa Calíope. Em grego Calíope significa “a da bela voz”. Ela foi a primeira das nove musas filhas de Zeus e de Mnemósine, deusa da memória. Com o poder encantatório da voz, herdado da mãe, e tendo a memória por avó, não admira que, nos seus ardis, as sereias façam com que os homens esqueçam quem são. Em inúmeras lendas o seu canto irresistível atrai os marinheiros levando-os a fazer naufragar os navios contra as rochas ou recifes onde habitam, produzindo o afogamento de toda a tripulação.
De acordo com o mitologista espanhol Juan Eduardo Cirlot as sereias são também símbolos do desejo no seu aspecto mais doloroso que leva à autodestruição. O seu corpo não pode satisfazer os anseios que o seu canto e a beleza do seu rosto e busto despertam. Se entendermos a vida como uma navegação, as sereias podem também simbolizar tentações dispostas ao longo do caminho para impedir a evolução do espírito detendo-o em alguma ilha mágica ou morte prematura.
Mas serão as sereias sempre tão malévolas?
As Sereias de Platão
No livro X da República Platão explica como está organizado o firmamento, de acordo com um sistema complexo em que da extremidade de uma coluna de luz “muito semelhante ao arco-íris mas mais brilhante e mais pura” pendia “o fuso da Necessidade, por cuja acção giravam as esferas”. Descrevem-se oito órbitas em torno do fuso “que girava nos joelhos da Necessidade”. Na mitologia grega a deusa Necessidade Anánkê cuja origem etimológica enuncia força, restrição e inevitabilidade, é a mãe das Moiras e personificação do destino.
Na narrativa platónica, no cimo de cada um dos referidos círculos “andava uma sereia que com ele girava, e que emitia um único som, uma única nota musical; e de todas elas que eram oito, resultava um acorde de uma única escala”. Aqui temos a origem da harmonia das esferas, cujo som não ouvimos por ser omnipresente.
Por sua vez, as três Moiras, filhas da Necessidade, estavam “sentadas em círculo, a distâncias iguais, cada uma em seu trono, vestidas de branco, com grinaldas na cabeça e cantavam ao som da melodia das Sereias: Láquesis o passado, Cloto, o presente, e Átropos o futuro”.
O canto das sereias tem em Platão um sentido muito mais profundo que o da habitual sensualidade mórbida. As sereias entoam o som que os planetas produzem na sua órbita criando a harmonia sobre a qual cada Moira cantará a melodia que entretece o passado, presente e futuro dos mundos.
As Sereias de Camões
Nos Lusíadas as sereias ou sirenas ajudam os navegantes ou enaltecem os feitos heróicos dos Portugueses. A sua voz mágica adormece malfeitores na esteira de Circe, uma feiticeira especialista em venenos; e Polifemo, o poderoso ciclope filho de Poseidon que devora marinheiros de dois em dois, quando Odisseu e os seus companheiros invadem inadvertidamente a sua caverna em busca de mantimentos. “Cantem, louvem e escrevam sempre extremos/Desses seus Semideuses e encareçam,/Fingindo magas, Circes, Polifemos,/Sirenas que co canto os adormeçam”; (Lusíadas V, 88) Há também, neste canto, uma referencia à musa Caliope, mãe das Sereias, quando Camões exorta Vasco da Gama a agradecer às musas, pois o desprezo pelas artes e a falta de cultura do povo português impera. Alerta o excelso poeta para a urgência de se alterar este panorama de pobreza cultural. O autor da epopeia enfatiza como é importante deixar um registo escrito das façanhas e glórias do povo português, corajoso, mas infelizmente rude e inculto. “Às Musas agradeça o nosso Gama/ O muito amor da pátria, que as obriga/A dar aos seus, na lira, nome e fama/De toda a ilustre e bélica fatiga;/Que ele nem quem na estirpe seu se chama,/Caliope não tem por tão amiga/Nem as ninfas do Tejo que deixassem/ As telas d’ouro fino e que o cantassem”. (Lusíadas V, 99). Mais adiante na epopeia, festeja-se com grandes manjares e muita música, “Cua voz de uma angélica Sirena” (Lusíadas X, 5) entoando panegíricos: “Mais estanças cantara esta Sirena/Em louvor do ilustríssimo Albuquerque” (Lusíadas X, 45).
A Sereia de Álvaro de Campos
O heterónimo pessoano Álvaro de Campos, nascido em Tavira, estudará engenharia naval em Glascow e regressará à pátria onde permanece desempregado: “Pertenço a um género de portuguêses/Que depois de estar a Índia descoberta/Ficaram sem trabalho. A morte é certa”. (Álvaro de Campos, Opiário) O desemprego, como a tantos de nós, suscita-lhe o desespero: “Caio no ópio por força. Lá querer/ Que eu leve a limpo uma vida destas/ Não se pode exigir”. (Ibid.) Álvaro de Campos é, tal como o próprio Pessoa afirma numa carta a Adolfo Casais Monteiro, “o mais histericamente histérico de mim”.
É este homem de sensibilidade à flor da pele, que um dia “sózinho, no cais deserto” contemplando o Indefinido ouvirá a voz de uma Sereia: “Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo/Úmido e sombrio marulho humano noturno,/Voz de sereia longínqua chorando, chamando,/Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,/(…)” (Álvaro de Campos, Ode Marítima) O canto da Sereia, neta de Menemósine, desperta-lhe a memória: “E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim./O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo/Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção/ Que fosse chamar ao meu passado/Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter”. (Ibid.) É a nostalgia da recordação de uma felicidade infantil que jamais voltará e da qual talvez não se tenha apercebido no momento. Uma felicidade vivida de forma provavelmente inconsciente, portanto, não sentida, e que agora está para sempre perdida.
O desespero agrava-se, mas a Sereia não desiste: “Mas estupendamente vinda de além da aparência das coisas,/A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Boca,/Vinda de sobre e de dentro da solidão noturna dos mares,/Chama por mim, chama por mim, chama por mim…/Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse,/Longinquamente, como se estivesse soando noutro lugar e aqui não se pudesse ouvir,/Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um hálito silencioso./De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,/O grito eterno e noturno, o sopro fundo e confuso:/Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô – yyy… (…)/Tremo com frio da alma repassando-me o corpo/E abro de repente os olhos, que não tinha fechado./Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez!/Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!(…)” (Ibid.)
A Sereia acorda o poeta que desperta para uma impassibilidade tecnológica que alivia: “Maravilhosa vida marítima moderna,/Toda limpeza, máquinas e saúde!” (Ibid.)
Mas ai de nós que exaustos estamos da era da técnica! Não haverá outra solução? Urge o teu canto, ó Sereia do Gilão!
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(Artigo publicado na edição papel do Caderno de Artes Cultura.Sul de Outubro)