Não foi propriamente um exemplo de recatadas virtudes cristãs. Na verdade, terá violado por vezes a linha vermelha da castidade, mostrando-se pouco católico no repeitante aos deveres de probidade amorosa a que se obrigara no seu compromisso com a igreja de Roma. Há até quem afirme que nessa matéria foi mesmo um “pecador libertino”.
Conhecem-lhe pelo menos uma filha, Isabel Coutinho – legítimamente assumida e registada -, a quem doou o morgadio de Sto António dos Casais, em Monchique e lhe fez casamento com Rui Pereira da Silva, alcaide de Silves. Contudo, alguns não deixam de lhe atribuir mais seis filhos de outras mulheres.
À parte estes pecados terrenos, Fernando Coutinho – assim se chama este descendente dos nobres da Casa de Vagos – não era um personagem qualquer. Foi bispo de Silves, vindo da diocese de Lamego onde exercera idênticas funções, e senhor de uma imensa fortuna. Escritor e intelectual de reconhecidas qualidades, integrou uma embaixada que D. João II enviou em 1493 a Roma para com o Papa Alexandre VI, – patriarca da família Bórgia, figura igualmente controversa em assuntos amorosos – discutir pormenores do que viria a ser o Tratado de Tordesilhas assinado entre as coroas ibéricas no ano seguinte.
Bem visto junto da corte, fez parte do círculo restrito que acompanhou os últimos dias de vida do Príncipe Perfeito, em Alvôr, de que terá sido conselheiro. Referências que fazem dele uma personalidade com enorme influência junto do poder real na sociedade do seu tempo.
A sua sepultura, em campa rasa mas ricamente trabalhada, apresentando em relevo as suas armas e o chapéu eclesiástico, pode ser apreciada junto ao altar mor da Sé de Silves, em contraste com a simplicidade, mesmo ao lado, da cripta onde durante quatro anos ficou o corpo de D. João II.
Na sua primeira visita pastoral ao Algarve, o prelado foi ao Cabo de S.Vicente, que gozava fama de local sagrado e de reunião de deuses. Ali mandou estabelecer uma tapada vocacionada para a caça, um convento e a edificação de uma residência para si, próxima de uma ermida ali existente para sepultura dos restos do mártir de S. Vicente.
Para o seu tempo, foi um homem de pensamento avançado. Assumido defensor da tolerância religiosa, opôs-se à conversão forçada de judeus e árabes, “não considerando válido o baptismo, para conversão deles em cristãos novos, que tinham recebido contra vontade”.
Artur Vieira de Jesus, numa publicação sobre D. Fernando Coutinho e a Aldeia do Bispo, adianta que “foi dele a iniciativa de mandar construir um farol – o primeiro naquele promontório – para dar assistência à navegação que passava pelo cabo”. Trouxe ao Algarve, o rei D. Manuel e acolheu-o com as mordomias devidas a um soberano, nas suas casas e propriedades. Em reconhecimento, o rei “lhe fizera mercê da igreja e local de Sta Maria do Cabo”, que dista uma légua do cabo propriamente dito. E para que não restassem dúvidas sobre o destinatário, o monarca deixou claro que “a doação foi feita ao próprio prelado e não à diocese de Silves”.
A partir de então a localidade terá ficado conhecida por Aldeia do Bispo, segundo assegura Artur Vieira de Jesus, contrariando teses de outros estudiosos que colocam a toponímia da aldeia muito antes da presença de D. Fernando Coutinho naquele local.
Mas a ação do prelado não se reportou apenas ao incremento e à proteção do culto vicentino. Sensível ao estado espiritual dos habitantes de Sagres que tinham de deslocar-se à Aldeia do Bispo para assistirem aos ofícios divinos – com perigos para as suas vidas e fazendas – “promoveu a criação da Freguesia e Paróquia de Sagres, formalizada por carta régia outorgada em Évora em 1519”.
Este lugar imponente e com forte ligação ao sagrado marcou sempre de forma profunda todos os reis que o protegiam e visitavam em peregrinação. E para D. Sebastião, por exemplo, o local era passagem obrigatória sempre que vinha para o sul, ficando a dever-se a ele a ideia de mandar construir uma fortificação que nunca se viria a concretizar, em defesa da Aldeia do Bispo exposta às incursões vindas por mar da pirataria que acossava Sagres e S. Vicente.
A elevação da aldeia do Bispo a vila, verificou-se apenas em meados do século XVI e com a perda da independência para Espanha. A notícia da revolta e da libertação ocorrida no primeiro de Dezembro de 1640, chegou logo à cidade de Lagos e às localidades pertencentes ao seu termo, incluindo a Aldeia do Bispo. As praça de Sagres e as fortificações que dela dependiam apresentaram a sua capitulação imediata.
Em reconhecimento pelos feitos prestados por Martim Afonso de Melo e pelo pai deste na luta contra a ocupação castelhana, “no dia 7 de Junho de 1662, em alvará assinado pela rainha Dª Luisa de Gusmão, em nome de D. Afonso VI, a aldeia é elevada à categoria de vila” numa decisão que não foi de total agrado dos senhores de Lagos que viam assim perder parte importante do seu território.
“Hei por bem fazer-lhe (a Martim Afonso de Melo) mercê, além de outras, da Aldeia do Bispo sita no termo da cidade de Lagos a qual Aldeia lhe mandarei fazer Vila com a condição ordinária, ficando-lhe em sua vida a Vila e este alvará se cumpra como nele se contém”.
Mas os novos senhores de Vila do Bispo, cuja descendência provinha da linhagem familiar do bispo Fernando Coutinho, quiseram mais e Martim Afonso de Melo estendeu o seu domínio às aldeias da Carrapateira, Raposeira e Figueira onde “efectuou partilhas e inventários, num claro desafio ao que fora estabelecido pelo soberano”.
Lagos apresentou o seu protesto, “facto que levou o então regente D. Pedro, a determinar o fim dos seus abusos pelo alvará de 15 de Setembro de 1672” que lhe retirou os privilégios de domínio senhorial conquistados dez anos antes. Vila do Bispo regressou, então, à posse definitiva da coroa portuguesa.
O seu suposto pai fundador, D. Fernando Coutinho, havia falecido a 16 de Maio de 1538, em Ferragudo.
Fontes: “Vila do Bispo: as origens – sec. XVI e XVII”, Artur V. Jesus; “Repensar a História de Vila do Bispo”, por João Velhinho; outras