A justificar a existência de um cânone clássico (ainda que haja quem prefira evitar tais preconizações), isto é, uma lista de obras literárias que se tornam intemporais, universais, incontornáveis, os tempos estranhos que vivemos ultimamente parecem ter recuperado obras de há décadas que, subitamente, se tornaram actuais e prementes. Foi o caso da explosão de vendas de 1984, quando Trump foi eleito, e, mais recentemente, no rasto da pandemia do Corona Vírus, A Peste, de Albert Camus, ou Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Por isso mesmo, muito se tem brincado nas redes sociais com fotos de avisos afixados em bibliotecas e livrarias onde se afirma algo como “mudámos todos os livros de distopias pós-apocalípticas para a secção de história contemporânea”.
Não quero aqui, e para variar um pouco, fazer uma reflexão em torno da obra, ou uma recensão, mas antes um artigo de opinião (chamemos-lhe assim, por ora), detendo-me em particular em algumas das frases das primeiras páginas deste livro recentemente relançado pela editora Livros do Brasil. Se as frases de abertura do romance nos distanciam imediatamente da realidade narrada, quando explanam que «Os curiosos acontecimentos que servem de assunto a esta história produziram-se em 194…, em Orão. Segundo a opinião geral, não estavam aí no seu devido lugar, antes saíam um pouco do habitual.», logo em seguida o narrador toca no que me parece ser um dos pontos sensíveis das últimas semanas, no que concerne à quarentena vivida em Portugal.
«Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e perderem em seguida, a jogar às cartas, no café, ou a dar à língua, o tempo que lhes resta para viverem.»
E assiste-se hoje, entre muito humor e algum desespero, a uma série de publicações e diários de quarentena em que os portugueses dão conta de como, de facto, parecem ter-se esquecido de viver. De parar. De se ouvirem respirar. De acordar de manhã sem ter que seguir uma agenda. E não, não digo que teletrabalho equivale a férias. Mas talvez pudesse ajudar a repensar um novo modelo de trabalho, que nos permita ter mais tempo para nós e para os nossos. Ou simplesmente para nós, porque sim, defendo o egoísmo e acredito que cada dia passado na nossa companhia é tempo precioso.
Mas Camus, ou melhor dizendo, para se ser literariamente ético, o narrador, prossegue com deliciosa ironia: «Mas há cidades e países onde as pessoas têm, de tempos a tempos, a suspeita de que existe mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida.»
Tornaram-se virais publicações de como a poluição se reduziu drasticamente desde a proliferação do Covid-19, e de como golfinhos e cisnes voltaram a Veneza, porém, tal como um vírus, estas são nocivas, pois são mentira. Num momento de crise, em que o maior perigo é invisível e vem do outro, o mundo viu-se obrigado a parar. O país inteiro viu-se obrigado a parar. E esta pode ser uma excelente oportunidade para repensarmos o nosso papel, o nosso propósito, o nosso caminho. Ou, como alerta Camus-narrador, podemos simplesmente passar pelos sinais de alerta sem que nada se modifique em nós.