No artigo publicado no mês passado intitulado “A mente – o grande tabu” mostrou-se como evoluiu a problemática do conhecimento no mundo ocidental. Hoje vamos aprofundar o tema tentando perceber as implicações da erradicação da consciência do conhecimento científico.
William James (1842-1910) considerado o “pai da psicologia americana”, de temperamento artístico e curioso, obteve uma formação muito ecléctica: trabalhou no atelier do pintor naturalista William Morris Hunt, estudou ciências e teologia. Em 1865 integrou a “Expedição Thayer” ao Brasil tendo permanecido durante 8 meses entre o Rio de Janeiro e a Amazónia. James acabou por se formar em medicina em Harvard, mas nunca exerceu, tendo sido ele a introduzir os primeiros cursos de psicologia científica nesta universidade. Durante 12 anos trabalhou afincadamente no livro Princípios de Psicologia que finalmente viu a luz em 1890. William James defendia que introspecção devia ser a principal forma de investigar a mente, método que definiu do seguinte modo: consiste em “olhar para dentro das nossas próprias mentes e relatar o que lá descobrimos”. O capítulo mais famoso deste livro versa sobre o “fluxo da consciência”, conceito inovador, por si introduzido. Considera que a consciência é uma corrente, e não uma sucessão de ideias. As suas águas misturam-se de tal forma que, por vezes, a nossa consciência individual é “mergulhada” ou “tingida” nas águas da consciência ou pensamento que a rodeiam. Por outro lado, tal como o caudal de um rio ou das ondas do mar, a nossa consciência tem um ritmo: experimenta transições e lugares de descanso, há “voos e pousos”. Por exemplo: descansamos quando nos lembramos de um nome de que estávamos à procura; partimos novamente quando ouvimos o choro do nosso bebé que acaba de acordar.
A investigação de William James continua a evoluir. Em 1912 publica o livro de ensaios Empirismo Radical estabelecendo que unicamente aquilo que é extraído da experiência é passível de ser discutido filosoficamente. Verifica, porém, que as relações entre coisas são tão directamente experimentadas quanto as coisas que entre si se relacionam; facto em virtude do qual as relações devem ser, elas mesmas, consideradas partes da experiência. Por aqui se percebe que é impossível erradicar a atenção aos processos mentais se se quer verdadeiramente conhecer alguma coisa.
A psicologia estava ainda a dar os seus primeiros passos, o seu método era ainda um work in progress, mas eis que surge John Watson (1878-1958) na universidade de Chicago a dizer o seguinte: a psicologia deve descartar todas as referências à consciência, à introspecção, aos estados mentais subjectivos, emoções, desejos e assim por diante. William James tinha falecido há apenas um ano, e John Watson foi como se tivesse espetado uma estaca no seu coração!
A partir de 1913 o behaviorismo ou, em português, a Psicologia Comportamental, na esteira de Watson, tomou a dianteira. Esta teoria e método de investigação psicológica vai beber à tradição da psicologia animal, a autores como Pavlov ou Thorndyke. Examina o comportamento humano e dos animais no que respeita a “factos objectivos”, isto é, estímulos e reacções que carecem de qualquer recurso à introspecção. Consideram que a psicologia não se deve preocupar com estados ou eventos mentais, ou com a construção de relatos de comportamento de processamento de informações internas. Afirmam que referência aos estados mentais, como as crenças ou desejos de um animal — mesmo que este animal seja o homem! — nada acrescenta ao que a psicologia pode e deve entender sobre as fontes do comportamento. Os estados mentais são entidades privadas, a ciência quer-se pública. Portanto, os estados mentais não se constituem em objectos adequados ao estudo empírico. Watson, naquela que ficou conhecida como “a experiência do pequeno Albert” levada a cabo em 1920, foi bem sucedido ao condicionar o comportamento de um bebé de 11 meses introduzindo-lhe uma fobia.
Para minha perplexidade, este modo de, como direi, “fazer psicologia científica”, obteve cada vez mais adeptos. Em 1953 B.F. Skinner afirma que uma vez que os fenómenos mentais carecem de qualidades físicas, eles não têm existência alguma. — Pergunto-me se existirá algo mais ofensivo! — No seu livro Beyond Freedom and Dignity (Para além da Liberdade e da Dignidade) publicado em 1971, Skinner, professor em Harvard, rejeita que as pessoas possam criar livre ou criativamente os seus próprios ambientes. Postula que “é de uma análise experimental do comportamento humano que se devem retirar as funções anteriormente atribuídas a uma pessoa livre ou autónoma, e transferi-las uma a uma para o ambiente de controle”.
Grosso modo, poderíamos sintetizar as teses dos psicólogos comportamentais da seguinte forma: não temos, ou é irrelevante considerar a existência do intelecto, pois os processos mentais ou fenómenos mentais que experimentamos internamente não existem ou não são passíveis de um estudo científico por não serem físicos. Daqui decorre também o seguinte: o que sentimos não importa, o que experimentamos, não importa. Se tivermos a ousadia de achar que possuímos uma mente e que sabemos algo acerca dela não estamos a ser científicos.
Que tem a filosofia contemporânea a dizer sobre tudo isto? O filósofo americano Daniel Dennet (1942-) é um dos mais influentes dos dias de hoje. Em 1992 publicou o livro Consciousness Explained (Consciência explicada) e a obra entrou para o grupo dos 10 melhores livros do ano, de acordo com o New York Times. Neste livro Dennet afirma, nada mais nada menos, que os estados interiores de consciência não existem! Descreve o ser humano como um conjunto de cerca de cem trilhões de células, cada uma das quais é um mecanismo irracional, um micro-robô amplamente autónomo. Osqualia, também não existem! — Tradicionalmente entende-se por qualiaas características intrínsecas, privadas e inefáveis da experiência, por exemplo: a vermelhidão da cor vermelha, o doce de uma fruta, o doloroso da dor. Quer isto dizer que as cores que vemos, os sons que ouvimos, as dores e os prazeres do corpo, as nossas emoções, os nossos sentimentos e os nossos pensamentos — esperanças, medos, ideias, alegrias e tristezas — todos os aspectos da nossa vida mental que só são acessíveis através da introspecção, não existem!
Em pleno séc. XXI, o materialismo científico e o comportamentalismo continuam a dominar o paradigma científico. Parece que nos lançaram um feitiço e nos colocaram nas trevas. Devemos deitar fora a nossa razão, desconfiar do que pensamos, mais ainda do que sentimos e simplesmente seguir ordens! Se o leitor acha que eu estou a exagerar verifique por si próprio:
Todos os dias entram pelas nossas casas a dentro os noticiários que, em todos os canais, seguem o mesmo alinhamento: o pivot conta-nos a notícia; seguidamente mostra-se-nos a notícia com uma peça sobre a mesma em que os intervenientes fazem e/ou dizem aquilo que o pivot já contou antes; pouco depois um comentador explica-nos aquilo que o pivotcontou e os intervenientes fizeram/disseram. Este ruminar de explicações só se percebe se partirmos do princípio que o espectador é acéfalo! Tristemente, aceitamos esta condição de mentecaptos e desentendemo-nos dos assuntos da nossa vida pública — vejam-se os níveis de abstenção que se registam quando seria fundamental exercermos o nosso direito cívico!
Deixámos a nossa vida por cabeças alheias nas quais não confiamos, quiçá porque acabámos por acreditar que não sabemos usar a nossa. Deixámos também o planeta ao cuidado de outros numa atitude cega e irresponsável como se nós próprios não o habitássemos. O fracasso da COP 26 bem no-lo demonstra!
O Café Filosófico que mantenho mensalmente há 5 anos é uma irreverência, nele está todo o meu empenho em contribuir para mudar este estado de coisas. Nunca a canção de Fernando Lopes Graça foi tão urgente e necessária: “ACORDAI!”
Café Filosófico dia 10 de Dezembro no Clube de Tavira / Ass. Ria Inquieta
Inscrições: [email protected]
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico