Atiravam-se poemas ao vento. Os paços da Ribeira eram, por esses anos, palco de amores e galanteios. Por ali desfilavam as mais belas donzelas da corte e fidalgos que as cantavam em rimas e versos. Daquelas janelas, avistava-se o rio, as naus e as caravelas cheias de contos e aventuras. Traziam notícias da Índia, do Brasil, do Japão, da Malásia e do Mar da China. Ali chegava o cheiro da pimenta, do cravo e da canela. Mais o oiro, escravos e marfim, as porcelanas e mais as sedas.
Aquele palácio era o centro do império. Capital do mundo!
Era ali, que Camões e outros galãs desocupados, conjugavam o verbo amar em canções, sonetos, vilancetes e redondilhas. Na inspiração do momento ou nas voltas de um mote atirado pelas damas. De entre todos, ele era o mais desejado. Porque não havia quem lhe disputasse a arte de cantar o amor em verso.
As ninfas do Tejo, damas da corte de Dª Catarina, mulher do rei D. João III, andavam perdidas de amor por ele e eram a sua inspiração poética: Violante de Andrade e sua filha Joana, Catarina de Ataíde e a infanta Dª Maria, Paula Vicente, filha de Gil Vicente, e as irmãs Sigeia.
E foi neste ambiente de galanteio e amor cortês que um dia se cruzaram os olhares do poeta e de Dª Francisca de Aragão, a mais nova de todas as cortesãs que acabara de chegar do Algarve, sua terra natal.
Francisca, ao contrário da beleza serena de Catarina e do porte altivo de Violante de Andrade, era de uma irrequieta elegância que deixava um rasto de luz por onde passava. Favorita da rainha, a nova donzela era a cópia da beleza de Petrarca: olhos azuis de mar, cabelos de ouro e seda, alvura de pele e cintura de palmo cingida.
Essa sua graciosidade, leve e descontraída, que passeava e exibia nos salões da corte, deixavam estupefactos os olhares dos poetas e dos cortesãos, incendiando os corações dos nobres mais ricos, cultos e engenhosos.
Não admira, pois, que tivesse desde logo despertado o ciúme e a inveja das outras, em especial de Dª Violante, de quem se falava à boca pequena que andava em caso de alcova com Luís Vaz de Camões, a quem entregara a educação de seu primogénito, D. António de Noronha.
No meio de besbilhotices e intrigas, certa vez, tinha o poeta regressado de Ceuta onde perdera o olho direito, Francisca, provocadora, para mostrar um desinteresse que não tinha, atirou-lhe com o defeito à cara, chamando-lhe “o cara sem olho”. Não perdeu pela demora e teve do poeta resposta pronta:
“De olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejam:
Vendo-vos, olhos sobejam;
Não vos vendo, olhos não são.”
E houve trocas de cartas e repetiram-se os motes e as glosas, os sonetos e as canções. Mil cumplicidades partilhadas pelos dois, mas pouco mais do que um devaneio poético.
Prolongou-se este jogo de sedução em verso por algum tempo, sabendo-se que Francisca tinha o sentido prático da vida e sabia domar os sentimentos, colocando-os num lugar que não lhe atrapalhassem o futuro. Piscava o olho a Camões, andava de caso com D. Manuel de Portugal, filho do conde de Vimioso e não deixava de enviar sinais a Pero Caminha, camareiro do infante D. Duarte, sem esquecer o músico e poeta, Jorge Montemor. Um tanto cabeça no ar e da fama não se livrava.
Entretanto, chegava a notícia que, sendo esperada, a deixou profundamente abalada: o poeta ia partir para um longo desterro, no oriente. E Francisca não quis faltar à despedida do seu “cara sem olho”, nem dar o exclusivo desse momento às suas rivais
Quando regressou, 17 anos depois, o poeta trazia na mala o manuscrito de Os Lusíadas, mas já quase tudo tinha mudado nos amores do Paço: Dª Catarina morrera e, Joana, filha de Violante, também. Por sua vez, Francisca, ia nos 34 anos de idade, e sem esconder uma emoção ainda forte pelo poeta, andava de caso com Juan Borja, embaixador em Lisboa do rei de castela, com quem veio a casar. Por esse facto, frequentou os salões das cortes mais luxuosas da Europa e recebeu o título de primeira condessa de Ficalho.
Ainda moça, tinha vindo do Algarve onde morava num palacete no Morgadio de Quarteira, propriedade da família de seu pai, Nuno Rodrigues Barreto, alcaide-mor de Faro e vedor da Fazenda do Algarve. Gente de posse com poder e influência, como o seu tio, Francisco Barreto, que chegou a vice-rei da Índia e Governador do reino dos Monomotapa, em Moçambique.
O príncipe dos poetas, que tantas paixões havia suscitado entre as damas do seu tempo, acabou sozinho. Morreu com a dor de saber que Violante, a sua paixão maior e Senhora da casa dos Noronha, tinha sido a razão do seu degredo e da sua desgraça.
Por essa altura, já pairavam no ar sinais de fim dos tempos. Os sinos dobravam pela pátria em Alcácer Quibir. E Camões escrevia o seu último poema de amor: “…fui tão afeiçoado à minha pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela.”
Fontes: “Os amores de Camões”, Teófio Braga, edição Fronteira do Caos, 2006; “Vida ignorada de Camões”, publicações Europa-América, José Hermano Saraiva; “Até que o amor me mate – As mulheres de Camões”, Oficina do Livro, Mª J.Lopo de Carvalho
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de agosto)