A notícia apanhou-me no meio da escrita que ficou quieta. E sentindo-te a meu lado, deixei-me ficar onde estava: – ali, onde o grande rio do sul abraça o mar, com a Espanha em frente. À distância de uma bala de canhão. Por estas bandas onde as águas se abraçam, um dia Santo António de Arenilha foi engolida pelas ondas, para vir renascer um pouco mais acima com outro nome. Por vontade de um homem que a desenhou a régua e a esquadro.
Vila Real de Santo António, afirmação e símbolo do poder nacionalista do marquês de Pombal alinha-se “em ruas que se perfilam retilíneas como soldados em parada”. E de frente para a Espanha, a estátua de Cutileiro está em alinhamento perfeito e central, num eixo que entra no edifício da alfândega, atravessa a câmara e vai dar à praça. Aqui, ao centro fica o obelisco, “símbolo vertical do poder de um rei e do seu ministro”.
Diz a história que na construção de VRSA recorreu-se ao pré-fabricado e às cantarias. Tudo trazido de Lisboa, seguindo-se depois a montagem dos blocos como se de um puzzle se tratasse. Por isso se diz que a tua cidade foi feita em 5 meses; que a primeira pedra foi lançada em março de 1774 e em agosto era aberto o edifício da alfândega virada para o Guadiana. Mas só em 1776 a vila pombalina foi oficialmente inaugurada.
Este modelo urbanístico – não cansaste tu de o escrever – insere-se no padrão iluminista do século XVIII, e Vila Real de Santo António segue uma linha arquitetónica que “é uma utopia iluminista como outras da Europa, a diferença é que esta foi construída”, como ouvi dizer um dia a Walter Ross, o arquiteto que concebeu a renovação do conjunto pombalino com base num plano de pormenor de salvaguarda do centro histórico. E com isso permitiu abrir portas à sua classificação como monumento nacional.
O projeto foi pensado e planeado de raiz como um todo coerente e depois da fachada e da praça real, a vila foi organizada em quarteirões para funcionar como uma unidade industrial onde era processado o pescado e a sua comercialização. Mas esta centralização do negócio das pescas, não tendo sido bem recebida pela população de Monte Gordo que detinha esse comércio desde os tempos de Santo António de Arenilha, veio mostrar-se decisiva para a afirmação do seu futuro.
Como tu sabes melhor do que eu, foi a abundância da pesca que se revelou de importância fundamental para ali se instalar um século mais tarde a primeira fábrica de conservas de atum em azeite do Algarve. Foi-lhe dado o nome de fábrica de Santa Maria, por iniciativa de um genovês. Seguiram-se depois os espanhóis, os italianos e os gregos. Foi o período mais próspero que a então vila do marquês algum dia conhecera.
E na memória coletiva ficaram nomes emblemáticos que fazem parte da história do Algarve e da indústria conserveira do país. Marcas registadas como o Atum Tenório, Bom Petisco e conservas Ramirez, para citar apenas alguns. Não há português que as não conheça. E gravada numa lata, o nome da tua terra viajou por esse mundo adiante. Nos anos de oiro das décadas de 40 e 50, chegaram a laborar na cidade ao mesmo tempo 20 a 30 fábricas. Hoje só restam algumas ruínas. Que delas se possa um dia fazer erguer o Museu das Conservas, um memorial aos tempos da heróica prosperidade e cumprir assim um desejo que gostavas muito de ver realizado.
O Guadiana – o teu rio – foi fronteira, foi abraço, foi caudal de aventuras para pescadores e contrabandistas. Se fosse como noutros tempos, haveríamos de seguir os dois e mais a Luísa, apanhar o barco e ir até a Ayamonte, do outro lado, comprar caramelos, chocolates e bugigangas. Ou passar escondidos da alfândega os casacos de cabedal que se iam comprar a Marrocos. Eram os tempos das longas filas de automóveis a aguardar passagem no Pensinsular, do Toy Parra.
E pelo rio acima navegava-se até ao Pomarão, passando por Guerreiros do Rio, Alcoutim, Mértola. E por aí fora. E não me esqueço de ver o teu empenhado entusiasmo com a flor das salinas do sapal de VRSA e Castro Marim.
Desde que me lembro, todos os dias, mas sobretudo aos fins de semana, a praça pombalina e as ruas adjacentes, são um ponto de encontro que fala todas as línguas. Um grande centro comercial a céu aberto. A maioria, eles, os vizinhos da Andaluzia, continuam a vir à procura dos atoalhados e dos faqueiros. E sempre que podem não perdem o hábito de visitar a praça mais periférica de um sul longe da atenção que se reclama de Lisboa. Que tu tanto reclamavas.
… Agora, o sol que nasce do lado de Espanha e que ilumina a bela praça do Marquês, o mesmo sol haverá de passar depois sobre Cacela. E no largo da igreja, junto ao muro caiado, haveremos de nos embriagar pela luz poente.
Aquela luz, o azul do céu e do mar, a igreja, o forte, o poço, as casas são, no poema de Emília Pinto, “a liberdade de uma aldeia pequena e bela, pintada de branco e azul”. À espera de um regresso. Porque tu não vais faltar à chamada!
Fontes: “Vila Real de Sto António e o urbanismo iluminista”, Câmara Municipal de VRSA, vários sob coordenação de António Rosa Mendes; outras.