Só nos últimos vinte anos o médico cirurgião alemão Markus W. Büchler terá realizado mais de quatro mil cirurgias ao pâncreas e a instituição que lidera, o Centro Europeu de Pâncreas, em Heidelberg, na Alemanha, uma das principais instituições para o diagnóstico e tratamento de doenças pancreáticas, trata em média cerca de 2.000 pessoas por ano. Nesta entrevista ao Expresso, o médico fala dos avanços no tratamento deste tipo de cancro, um dos piores, que ainda mata 90% do total de pacientes. Em Portugal, a convite da Fundação Champalimaud, para ajudar a erguer o novo Centro do Cancro do Pâncreas Botton-Champalimaud – uma estrutura única que cruza a investigação com o tratamento pancreático -, o cirurgião considera que, em poucos anos, Portugal estará a par dos melhores do mundo nesta área.
As últimas notícias indicam que a incidência do cancro do pâncreas está a aumentar e a ser detetado mais frequentemente em pessoas mais jovens. O que leva a este aumento?
Importa dizer que os diagnósticos tornaram-se muito melhores. Se por um lado isso tem a ver com o estilo de vida das pessoas mais jovens, deve-se também à maior capacidade da medicina moderna para detetar este tipo de cancro. No passado era muito mais difícil detetar o cancro do pâncreas. O que está provado é que fumar pode claramente causá-lo. Mas há outras possíveis razões, como o consumo excessivo de álcool, que pode causar inflamação crónica no pâncreas e, por causa disso, vir a desenvolver mais tarde um cancro. Também há hipóteses que apontam para que uma má alimentação possa estar a causar cancro no pâncreas, como o consumo exagerado de carne. É provável que a comida que se consome atualmente [alimentos processados] cause inflamação no pâncreas e vir depois a desenvolver cancro. Mas ainda não foi provado.
Não é preocupante que haja cada vez mais pessoas com 30, 40 ou 50 anos a morrer de cancro no pâncreas?
Há atualmente mais pessoas jovens a morrer de cancro no pâncreas, mas isso é relativo. Na nossa sociedade é ainda um tipo de cancro de pessoas mais velhas, costuma desenvolver-se mais entre os 65 e 70 anos. Mas se as pessoas estão a viver até aos 80 ou 90 anos, sessenta anos não é assim uma idade tão avançada…
Mas no passado era bastante raro detetar-se este tipo de cancro em pessoas mais novas, não era?
Tem sido muito raro homens e mulheres jovens, com 35 ou 40 anos, sofrerem de cancro pancreático. Esse número está de facto a crescer, mas ainda não é um diagnóstico importante nas pessoas jovens.
Foto D.R. Nuno Botelho
Associada à má alimentação que referiu, a obesidade é outro fator para que se desenvolva esta doença?
A obesidade é, de facto, outro grande problema. Enquanto sociedade estamos demasiado obesos. A percentagem de obesidade é muito alta, e tem um papel importante na origem de muitas doenças, incluindo as doenças pancreáticas. A começar por uma inflamação crónica. A diabetes também é um grande fator de risco. Contudo, do ponto de vista científico, não foi provada uma relação direta entre pessoas com grande obesidade e cancro no pâncreas.
O que há a fazer em concreto para evitar este tipo de cancro tão letal? Comer melhor, fumar menos?
Primeiro que tudo, parem de fumar. É a maneira mais fácil de prevenir cancro no pâncreas. Em segundo lugar, bebam álcool de forma moderada, apenas para diversão – e não para ficarem bêbados. Pode-se beber um copo de vinho tinto por dia, mas não se pode beber uma garrafa de tinto por dia, porque faz mal ao pâncreas e a outros tantos órgãos. Para preservar a nossa saúde temos que controlar o nosso estilo de vida. Não fiquem obesos, consumam pouco álcool, parem de fumar imediatamente e pratiquem desporto. Se cumprirem tudo isto têm uma boa hipótese de não ter cancro. Mas como sabemos o cancro é uma doença frequente. E, façamos o que fizermos, muitas pessoas irão desenvolver cancro.
Até por razões genéticas, se houver histórias familiares de cancro…
Exato. E porque não vivemos duzentos anos…
Mas a humanidade quer estender a sua longevidade até ao máximo…
É verdade. Na Alemanha, um terço das pessoas morre de doenças cardiovasculares. Outro terço morre de cancro. E os restantes morrem de todas as outras razões, como acidentes, por infeção do coronavírus, o que seja. O cancro tem um grande papel, mas a medicina está a dar boas hipóteses de tratar e curar as pessoas com cancro, ou de lhes dar melhor expectativa de vida.
Os números mostram que este é o cancro com maior taxa de mortalidade, em torno dos 95%, entre o grupo dos principais cancros, e menos de metade dos pacientes com tumor no pâncreas têm indicação de cirurgia, os únicos com expectativa de sobrevivência. Este cenário está a melhorar?
Vejamos, há 50 anos praticamente todos os homens e mulheres com cancro pancreático morriam no período de um ano. Agora, em 2021, 30% a 40% de pacientes com cancro no pâncreas podem ser tratados de uma forma curativa. Nesses casos, a expectativa é de cura. O seu tratamento é discutido por especialistas, e 20% de todos os casos podem ir diretamente para cirurgia. Mas a grande evolução nesta área é que, além desses, outro grupo de 20% a 30% podem tornar-se candidatos à cirurgia, porque o chamado ‘tratamento sistémico’ – o que envolve quimioterapia – pode fazer com que o tumor se torne mais pequeno, que as metástases desapareçam e passem a poder ser candidatos cirúrgicos. Se o tumor for totalmente removido, estes pacientes têm hipótese de cura. Isto é absolutamente novo e o resultado da evolução dos últimos 10 anos. Cerca de metade ou mais dos pacientes poderão ser candidatos à cirurgia. Ou seja, os números que apontavam para uma mortalidade de 95% para o cancro no pâncreas, baixaram para os 90%. É o maior ganho. Porque os doentes que podem ser operados e tirar totalmente o tumor têm 40% de hipóteses de sobreviver nos cinco anos seguintes. Cinco anos de sobrevivência é um resultado fantástico para pacientes com este tipo de cancro.
Foto D.R. Nuno Botelho
Mas o cenário parece adverso. O cancro do pâncreas era anteriormente a 6ª ou 7ª causa de morte por cancro, e nos últimos anos está a subir no ranking. Atualmente, nos EUA é a 3ª causa de morte e na Europa é a 4ª. Por outras palavras, cada vez mais pessoas em termos de percentagem têm tumores no pâncreas e morrem deles. Isto em contraciclo com a maioria dos outros cancros …
O que se diz é que daqui a 10 anos o cancro no pâncreas estará em número dois nos tipos de cancro que mais mortes provocam nos países desenvolvidos.
A investigação nesta área vai no sentido de alterar essa previsão?
Estamos num bom caminho para ajudar mais pacientes com este tipo de cancro. Têm sido feitos todos os esforços e os casos são agora analisados por uma vasta equipa multidisciplinar, com resultados muito melhores. No passado, o cancro pancreático era considerado uma doença intocável e muitos poucos pacientes poderiam ser ajudados pelos médicos. Por isso o cancro no pâncreas era uma doença muito indesejada. Mas isto tem mudado dramaticamente. Estamos a tratar todos os pacientes. Ajudamos a curar uns, a outros alargamos o seu tempo e melhoramos a sua qualidade de vida. Agora toda a gente com cancro no pâncreas pode ser ajudada, já não é um desastre em que ninguém pode ajudar, com os pacientes a ter dores severas, sem conseguirem comer. Isso deixou de acontecer com a crescente experiência médica e o avanço científico.
Pode-se usar a palavra “cura” quando falamos de cancro?
Sim. Como sabem, antigamente o cancro era a mais terrível das doenças. Atualmente, na Europa e restantes países desenvolvidos, podemos curar metade dos doentes com cancro. E isto é válido para a leucemia, cancro da mama, cancro da próstata ou do cólon. As taxas de cura têm aumentado de forma expressiva devido à medicina moderna. Infelizmente o cancro no pâncreas é ainda um grande problema. A sua taxa de cura melhorou, mas ainda está muito longe dos 50% de muitos outros tipos de cancro.
Foto D.R. Nuno Botelho
Ser um grande cirurgião especialista nesta área, com uma taxa de mortalidade tão elevada, é estar sempre em busca de um milagre durante os tratamentos e na sala de cirurgia?
Somos seres humanos. Não somos fazedores ou criadores de milagres. Somos pessoas muito modestas, que tentam fazer o seu melhor. Mas a questão é pertinente. A cirurgia pancreática é muito perigosa. O pâncreas é um órgão delicado e difícil de manobrar, tem que se evitar que o suco pancreático saia e entre no sistema sanguíneo do corpo. O que seria um desastre. O que conta é a experiência, experiência, experiência. Claro que é uma questão de competência, mas também de experiência. Se a competência e a experiência se aliarem, será bom para os pacientes.
Sendo um especialista experiente nesta área com uma tão alta taxa de mortalidade, como lida com a falha e a frustração nos resultados?
Refere-se à falha cirúrgica?
Refiro-me mais à frustração de não conseguir bons resultados no tratamento dos pacientes.
Como cirurgião tenho de ser crítico. É extremamente importante ver os resultados, e os maus resultados, e discutir sobre eles e, com isso, melhorar. Só quando falamos sobre os nossos erros conseguimos evoluir. E isso é muito importante na cirurgia. E assim, portanto, o conceito de cirurgia inclui a gestão dos erros. Só então se tornará um melhor cirurgião, quando fala dos erros, das falhas.
Muito interessante o conceito de evolução através da falha, do erro e da frustração…
Absolutamente. Nós, que tratamos estes pacientes pancreáticos, sentimo-nos frustrados diariamente. Porque eu vejo todos estes pacientes que tentaram tratamentos e, mesmo assim, após dois anos, ou mesmo mais cedo, morrem. Isso é uma grande frustração. Mas, entretanto, vemos muitos mais que me enviam postais de Natal após 3, 4 ou 5 anos. O que quer dizer que ainda estão vivos. E isso dá-nos confiança, segurança e força para continuar a trabalhar e ultrapassar a frustração.
Como imagina esta área daqui a 10 anos?
Vejamos, há 50 anos havia praticamente 100% de mortalidade para pacientes com este tipo de cancro. Há 10 anos, tínhamos uma taxa de mortalidade de 95%. Neste momento estamos com uma taxa de 90% ou melhor. E daqui a 10 anos estaremos perto dos 80% ou 75%, porque nós, cirurgiões, vamos desenvolver técnicas para curarmos mais pacientes. Assim, espero que daqui a 10 ou 20 anos surjam medicamentos muito melhores e mais eficazes para tratar este cancro, como já acontece para outros.
Um dos problemas é que na maioria dos casos, esta doença não é detetada numa fase precoce. E ainda não existem ainda testes preventivos para este tipo de cancro. É verdade que a investigação na área da biologia molecular pode ajudar a um melhor cenário? A luz ao fundo do túnel pode estar nestes exames preventivos ao sangue, urina ou ar expirado?
Sim. Quanto mais cedo detetarmos este cancro, melhor podemos tratá-lo e melhor será a taxa de sobrevivência. Assim, a criação de diagnósticos precoces através de análises ao sangue utilizando-se técnicas moleculares serão apostas vencedoras para um bom tratamento. Existem milhares de investigadores em todo o mundo a investigar e esse teste vai surgir.
No futuro poderá bastar irmos a uma farmácia e fazermos um teste simples – como agora fazemos para o coronavírus – para detetarmos precocemente se estamos a desenvolver algum tipo de cancro, nomeadamente o do pâncreas?
Acho que sim. Acho que o futuro para tratar o cancro pancreático será detetá-lo numa fase precoce ou até em fases preliminares. Ou seja, antes de se desenvolver um cancro. Pode encontrar as mudanças no sangue dos ‘pré-cancros’ em tecidos que indicam que com tempo se desenvolverá um cancro em dois, três ou cinco anos. Então não se espera, retira-se logo. É o que se faz no cólon, quando se removem os pólipos [intestinais] e se evita assim o cancro. Também há pólipos no pâncreas – e se os pudermos localizar e remover podemos prevenir o cancro. Mas ir a uma farmácia fazer um teste é uma questão de tempo. Recordo que já se faz um teste de sangue bastante indicativo para detetar o cancro na próstata, que é um dos cancros mais frequentes nos homens. Já há atualmente ‘supertestes’ que ajudam a detetá-lo.
Em comparação com o que se faz atualmente em todo o mundo nesta área, Portugal está numa boa posição?
Fui convidado a ajudar a erguer este novo centro dedicado exclusivamente ao cancro pancreático, da Fundação Champalimaud, que é único não só em Portugal como na Europa, e que irá ter brevemente um nível similar para o tratamento pancreático como se encontra na América, no Reino Unido, na Alemanha e noutros países desenvolvidos, como a Austrália ou o Japão. Este novo Centro do Cancro do Pâncreas Botton-Champalimaud, que é o primeiro no mundo simultaneamente dedicado à investigação e ao tratamento do cancro pancreático, cruza uma equipa interdisciplinar. Ou seja, concentra toda a pesquisa e atividades clínicas sobre cancro pancreático no mesmo local. O que nunca foi feito no mundo. Vai começar a receber pacientes no próximo ano e tornar-se-á um dos melhores centros do mundo em dois ou três anos.
Refaço a pergunta de há pouco. Ser um cirurgião experiente e especializado num cancro tão difícil, complexo e letal pode ser encarado como uma espécie de arte, que envolve muito tempo e muitos anos de experiência?
Temos de ser modestos. Nunca diria que é um milagre. Diria que a cirurgia como um todo é uma espécie de arte, como pintar. Operar é uma arte, mas pode ser aprendido. Ninguém nasce como o melhor cirurgião. Nunca acontece. Tem de aprender e leva muitos, muitos anos. E se tiver um certo talento, o cérebro certo e experiência pode ser que a sua cirurgia se torne uma arte. Porque a cirurgia não é acerca das mãos, é mais acerca do cérebro que comanda as mãos. Mas repito, temos que ser modestos. E saber trabalhar em equipa. O mais importante em medicina.
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL