E se do cruzamento entre a variante mais agressiva e a variante mais contagiosa surgir uma linhagem que combina características das duas? É o que se receia que possa ter sido detetado no Chipre, onde foram identificados 25 casos de covid-19 que estão a alertar e a dividir a comunidade científica. Depois de analisar esse conjunto de estranhas infeções, o diretor do Laboratório de Biotecnologia e Virologia Molecular da Universidade do Chipre, Leondios Kostrikis, garante ter descoberto uma nova estirpe do SARS-CoV-2, que o investigador cipriota se apressou a batizar de Deltacron. O nome não engana: Delta+Omicron= Deltacron.
O resultado desta soma, caso os dados se confirmem, poderia ser um híbrido que apresenta mutações presentes na Delta, mais severa, e na Ómicron, com uma capacidade galopante de disseminação. Na passada sexta-feira, as sequências genéticas do coronavírus obtidas no Chipre foram enviadas para o banco de dados internacional GISAID, do Instituto Pasteur, em Paris.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda não se pronunciou sobre este hipotético mutante. Ao mesmo tempo, são muitos os especialistas que defendem que tudo não passa de um erro técnico na análise das amostras recolhidas, fruto de uma contaminação laboratorial ocorrida durante a sequenciação do genoma, cenário que Leondios Kostrikis recusa veemente. Mas, afinal, o que se sabe sobre esta sublinhagem? É possível uma fusão entre duas variantes? Como é que isso acontece? E qual o risco de um cocktail assim?
“É preciso esperar por mais informação” porque “neste momento ainda se sabe muito pouco”, começa por dizer, ao Expresso, o virologista Paulo Paixão. Ainda assim, o presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia coloca água na fervura. “Não me parece que tenha havido um fenómeno de junção de duas variantes”, considera.
“Aquilo que me parece é que pode ser uma variante que foi juntando mutações que são comuns”, observa o especialista, uma vez que “os processos de criação de mutações são contínuos” e “este vírus tem, em média, duas mutações por mês” – e “quanto maior a circulação, mais mutações vão surgir”. Todavia, a maior parte delas, explica, “não tem uma mínima implicação”, a não ser que ocorram “nas zonas de maior interesse, nomeadamente na proteína spyke”. Isso faz com que “todas as outras variantes que têm lançado mais alarme apresentem sempre mais ou menos conjuntos de mutações semelhantes”, nota Paulo Paixão.
Não obstante, o virologista reconhece que “essa ideia de fusão pode estar sempre em cima da mesa” pois “há outro vírus respiratório em que isso acontece”: o da gripe. E “aqui não se está a falar da gripe sazonal, que todos os anos apresenta mutações”. Paulo Paixão refere-se às pandemias de gripe – como a Gripe Espanhola ou a ‘gripe das aves’ -, “normalmente ocasionadas por fusões de dois vírus diferentes que infetam a mesma célula, de onde sai uma espécie de híbrido”.
Porém, “esse fenómeno ainda não está demonstrado que tenha acontecido nestes 25 casos de Chipre” e “no caso dos coronavírus é mais difícil surgir um híbrido” do que na gripe, afirma o presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia.
“Teria de surgir através de alguém com uma dupla infeção, neste caso a Ómicron e a Delta”
Paulo Paixão, presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia
“Quem faz as variantes é o ser humano”
O microbiologista Carlos Cortes, também ouvido pelo Expresso, corrobora que “a comunidade científica ainda não validou os dados de Chipre”, mas, “do ponto de vista teórico, é perfeitamente possível ter todas as combinações imaginárias”. E, “por mais irónico que seja, quem faz as variantes é o ser humano”, aclara o diretor do Serviço de Patologia Clínica do Centro Hospitalar Médio Tejo (CHMT) e presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos.
Novas estirpes dos vírus são produzidas por alguém infetado, porque “há uma maquinaria nas células e o vírus programa essa maquinaria para se reproduzir” e espalhar cópias idênticas dentro do organismo. O problema é que “as nossas células não são perfeitas e, por vezes, replicam mal o vírus, que acaba por adquirir outras características”, explica Carlos Cortes.
“A maior parte dessas características não favorecem o vírus, que muitas vezes acaba por morrer, mas nesta imensidão de probabilidades há uma ou outra que favorece o vírus, como por exemplo ser mais contagioso, fixando-se de forma mais eficaz às células”
Carlos Cortes,presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos
É por isso que é preciso “ter sempre precauções e, sobretudo, uma grande capacidade de adaptação às novas realidades e conformações do vírus”, advoga o diretor do Serviço de Patologia Clínica do Centro Hospitalar Médio Tejo, onde a Ómicron representa 98% dos casos.
“Se tivermos uma estirpe que tem a capacidade de contágio da Ómicron e a virulência da Delta, estaremos perante um grande problema”: um “super SARS-COV-2”, capaz de “provocar mais estragos nos doentes”, adverte Carlos Cortes.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL