A sublinhagem BA.2 é mais transmissível do que a variante Ómicron e é mais evasiva aos anticorpos neutralizantes adquiridos por infeção prévia, elevando assim o risco de reinfeção para quem já teve covid-19: é isso que apontam dois novos estudos.
O primeiro estudo, realizado na Dinamarca entre 20 de dezembro e 18 de janeiro, revela que pessoas infetadas com a estirpe BA.2 têm 39% de probabilidades de contagiar a agregado familiar doméstico, o que fica acima do risco de 29% para quem partilha casa com alguém infetado pela Ómicron. Ao comparar a capacidade de disseminação da BA.2 com a da BA.1, os resultados indicam “um aumento inerente da transmissibilidade da subvariante BA.2”.
O risco de ser infetado em casa, tanto pela BA.2 como pela BA.1 (versão original), “é mais alto para pessoas não vacinadas do que para quem foi vacinado e recebeu a dose de reforço”, concluem os investigadores, o que “sublinha o efeito positivo da vacinação contra as duas linhagens da Ómicron”.
O segundo estudo, conduzido por pesquisadores da Universidade da Califórnia em São Francisco, demonstra que a proteção conferida pela imunidade natural, conferida por infeção prévia, é três vezes inferior à capacidade de resposta imunitária obtida com a dose de reforço da vacina contra a covid-19.
Por provocar sintomas mais ligeiros, aqueles que já recuperaram da Ómicron continuam “vulneráveis ao vírus existente e a variantes futuras que surjam”, uma vez que “a quantidade de anticorpos neutralizantes produzidos durante a infeção parece estar relacionada com a severidade da doença”. Ou seja, o risco de reinfeção aumenta.
“Os nossos resultados sugerem que a imunidade induzida pela Ómicron pode não ser suficiente para prevenir a infeção por uma variante mais patogénica que possa surgir no futuro”, advertem os investigadores, em declarações à Bloomberg, frisando a “importância das doses de reforço para aumentar a imunidade, pois a infeção, por si só, não é confiável”.
À conversa com o Expresso, para analisar ambos os estudos, o microbiologista Carlos Cortes nota que “os dois estudos ainda carecem de revisão pelos pares, de maneira que ainda há muitas coisas que têm de ser confirmadas”. De qualquer modo, acrescenta, “reforçam alguns aspetos que já eram conhecidos”, desde logo que “a BA.2, sublinhagem da variante Ómicron do SARS-CoV-2, é muito mais transmissível” e “tem uma capacidade de fugir mais à vacina”, que, todavia, mantém níveis de eficácia “muito aceitáveis”.
O especialista confirma que “a resposta dos anticorpos neutralizantes não é tão eficiente no caso da BA.2 como noutras variantes mais antigas”. Por ter uma capacidade de disseminação superior, a nova sublinhagem “está a ocupar um espaço em Portugal cada vez maior e pode tornar-se dominante”, antevê Carlos Cortes. “Tem sido assim a história deste e de qualquer vírus. A estirpe que tem mais vantagem – aquela que é mais contagiosa e escapa mais facilmente à proteção conferida pela vacina – acaba por prevalecer”, afirma o também presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos.
“Os efeitos clínicos da BA.2 são muito menos graves do que, nomeadamente, os da Delta, que teve um impacto muito negativo em termos de saúde pública. Esta sublinhagem é aquela que, do ponto de vista clínico, traz menos preocupações”, assevera Carlos Cortes. “Tem a vantagem de provocar sintomas muito leves e moderados, que é algo que não acontecia com todas as outras estirpes que surgiram no passado”, observa o microbiologista. Isso, defende, “abre a perspetiva de um enquadramento endémico desta doença, com maior caráter de previsibilidade e de antecipação, o que permite controlar com mais facilidade a resposta do SNS a surtos que possam surgir ou a aumentos de casos que possam vir a acontecer”.
Apesar de reconhecer que “há uma saturação [de novos casos] que está a acontecer neste momento”, Carlos Cortes acredita que haverá uma “tendência de menos casos que se deverá consolidar nos próximos meses”. Porquê? “Porque os portugueses, além de estarem vacinados com a dose de reforço, também foram infetados e com isso têm uma imunidade muito mais forte do que alguma vez tiveram desde o início da pandemia”, sustenta o diretor do Serviço de Patologia Clínica do Centro Hospitalar Médio Tejo.
Contudo, “o facto de a covid-19 passar a ser endémica não nos resolve de todo o problema”, alerta o microbiologista, que dá como exemplo “uma série de infeções que estão endémicas, como a malária ou a tuberculose, que continuam a matar milhões de pessoas”. Por isso, conclui, “é importante continuar a ter pontos de controlo a nível mundial, onde possam ser detetados surtos e o surgimento de novas variantes”, além de apelar à “continuidade do uso da máscara, ao respeito pelo distanciamento físico e à higienização das mãos”.
Desconfinar como lá fora é uma ideia “atrevida” que “não deve ser seguida”
Já o imunologista Luís Delgado, também ouvido pelo Expresso, encara o cenário endémico como um “pensamento esperançoso de querer ver as coisas, que é bom para as pessoas não viverem tão deprimidas e é aquilo que todos gostariam que acontecesse, mas é pouco provável”. “Não há evidências suficientes que sustentem isso”, advoga o professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP).
“A ideia de que [a Ómicron e a nova sublinhagem] são mais ligeiras, que vem aí a imunidade de grupo e que por isso vamos todos desconfinar é treta. É uma ânsia infundada e perigosa”, considera Luís Delgado. “Nada nos diz que não poderá surgir uma Ómicron 3.0 que possa ser potencialmente mais agressiva”, complementa o investigador do CINTESIS (Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde).
Num momento em que vários países europeus estão a deixar cair as restrições – tal como Suécia, Dinamarca, Finlândia, França ou Reino Unido -, Luís Delgado avisa que “não é boa ideia seguir esses exemplos” que “estão a desconfinar mais por razões políticas do que científicas”. Para o especialista, trata-se de uma estratégia “atrevida e cheia de incógnitas”. “Eu não iria para a Dinamarca nos próximos dois ou três meses”, atira o professor da FMUP, preferindo não “embandeirar em arco”.
Até porque, salienta Luís Delgado, “há um problema adicional a breve trecho que é preciso considerar”: “tivemos eleições em Portugal, com arruadas e com toda a gente aos abraços, vamos ver no que isso vai dar”.
Mesmo com certificado de recuperação é preciso “testar, testar, testar”
Dada a maior transmissibilidade da sublinhagem BA.2, aliada a um risco acrescido de reinfeção, os certificados de recuperação deixam de ser uma garantia. O documento é válido durante 180 dias e faz com que, durante esse período, aqueles que já foram infetados pelo SARS-CoV-2 fiquem isentos de apresentar teste negativo para entrar em bares, discotecas, recintos desportivos ou equipamentos culturais, entre outros.
“É de pressupor que se a pessoa já foi infetada tem alguma imunidade e por isso tem de ser encarada como equivalente a outra que fez a vacinação”, refere Luís Delgado. Porém, “se foi infetada com uma estirpe antiga, provavelmente poderá ser reinfetada por uma variante nova que conseguiu escapar às defesas do organismo”, comenta o imunologista, para quem “é importante manter a vigilância epidemiológica dessas pessoas”. “Isentá-las de efetuarem testes durante seis meses após a infeção é uma estratégia arriscada neste momento” em que há um “otimismo excessivo”, vinca o investigador,
“É preferível testar, testar, testar para evitar a disseminação do vírus, do que andarem aos abraços nos estádios de futebol, nos restaurantes e nas discotecas a passar uma nova versão que pode surgir a qualquer momento, sobretudo com a reabertura das fronteiras e com os facilitismos nas viagens”
Luís Delgado, imunologista
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL