Que os sistemas políticos europeus estão fragmentados é uma evidência. Isso mesmo deverá ser confirmado na eleição portuguesa do final deste mês, em que não se espera que qualquer partido consiga garantir sozinho uma maioria estável para governar durante quatro anos. E quanto mais se fala em soluções de governo, acordos estáveis e entendimentos de poder, mais vale a pena procurar exemplos de sucesso.
A Alemanha, que assistiu já à fragmentação do sistema político, está desde há muito habituada a soluções de coligação — até porque o seu modelo foi pensado para as beneficiar. Mesmo assim, o acordo que deu posse ao novo Governo juntou três partidos numa coligação que há uns anos seria impensável: sociais-democratas, verdes e liberais alinharam um detalhado programa de governo que se lê como um mapa de intenções. E isso justifica um exercício que olha para diversas formas de governo, de forma a tentar tirar ilações do que aí pode vir na noite de 30 de janeiro em Portugal.
Começando pelo contexto político de fragmentação do sistema, interessa explicar as suas razões. E aqui importa ouvir Pedro Magalhães, cientista político do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “O que aconteceu na Europa foi a introdução de novos temas que, de alguma maneira, são ortogonais ao conflito esquerda/direita tradicional. Quando olhamos para os novos partidos políticos, o que vemos é a manifestação dessa nova abordagem política: libertários, verdes, direita radical tradicionalista… todos têm posições que não encaixam de forma simples no conflito económico esquerda-direita. Há uma direita radical na Europa a defender políticas redistributivas e há uma esquerda libertária que tem posições muito progressistas e que muitas vezes acaba por ser mais sensível a questões de mercado”, descreve. O sistema português acabou por afastar mais tempo a pulverização do voto precisamente por causa das barreiras colocadas pelos partidos tradicionais. Mas agora, apesar dos esforços, a desmultiplicação do voto é uma realidade que deverá implicar imaginação para chegar a soluções estáveis de governação.
Michael Meyer Resende, diretor do Democracy Reporting International, reconhece as mesmas tensões em vários sistemas políticos. “Com mais partidos, há mais hipóteses de representação adequada dos eleitores e a combinação de valores e prioridades adequa-se melhor a cada momento”, explica.
Ainda assim, as coligações não são necessariamente a única opção. O que estará à partida fora de causa é uma maioria absoluta monopartidária, mas isso não exclui coligações ou mesmo governos minoritários, como refere Pedro Magalhães. “Há duas maneiras de governar com minoria: uma coisa é ter um governo minoritário como já tivemos, que procura um apoio para cada medida, a chamada geometria variável; a outra solução é o chamado parlamentarismo de contrato, em que os partidos chegam a acordo para a duração de uma legislatura, mas sem coligação. Isso funcionou em vários países, incluindo em Portugal: permite que partidos sem apoio de uma maioria possam governar e permite que os partidos que apoiam essa solução não tenham de entrar no Governo”, diz.
Entramos, para efeitos de comparação, no caso alemão: um sistema político dividido entre dois grandes partidos tradicionais, que se começou a fragmentar anos antes do português, e que premeia soluções de coligação. Quando as eleições que definiram o sucessor de Angela Merkel terminaram com uma diferença de apenas 1,6% entre os dois maiores partidos, foi necessário recorrer à imaginação e ao pragmatismo para evitar soluções como na Holanda ou na Bélgica, onde não é raro passar mais de meio ano sem solução governativa. O exemplo alemão é interessante a vários níveis: pela capacidade negocial e pragmatismo revelado pelos vários partidos, pela recusa da inclusão da extrema-direita nas esferas de poder, pela tradição em manter coligações estáveis que duram mandatos inteiros e pelo respeito nas esferas de intervenção das várias forças políticas.
Todo o processo negocial em Berlim foi extenuante, mas um óbvio sucesso. Na própria noite eleitoral de 26 de setembro, todos os líderes partidários cumpriram a tradição e foram à televisão pública debater os resultados e dar o tiro de partida informal para as negociações que começariam duas semanas depois. Os três partidos da coligação Social-Democrata-Liberal-Verde nomearam 300 especialistas para 22 grupos de trabalho, especialistas esses capacitados para negociar dentro das linhas definidas por cada força política. E, à boa maneira alemã, pouco foi deixado ao acaso: o planeamento obrigava a que as negociações decorressem entre as 11h e as 17h, com uma rápida interrupção para almoço; o resultado para cada grupo de trabalho teria de ser um documento de entre 3 a 5 páginas com tipo de letra Calibri, corpo 11, espaçamento entre linhas 1.5.
O tomo agregador ficou pronto no dia 11 de novembro, a tempo de resolver diplomaticamente os últimos desacordos em cimeiras de topo entre os líderes partidários, onde se discutiu também a distribuição dos ministérios. Foi depois tornado público e votado individualmente pelos três partidos. Menos de um mês depois, a 8 de dezembro, o Governo tomou posse, com o documento de 176 páginas a servir de programa. Mais notável do que o formato, foi o secretismo do processo. Nada de substancial transpirou para a imprensa, não se usaram fontes anónimas para atacar ou promover uma determinada visão, e só quando foi dado como terminado é que o documento foi tornado público.
Este é na prática o verdadeiro guia de um governo original, que tem a vantagem de arredondar as arestas mais difíceis da coligação, mas que naturalmente não resolve todos os desacordos. Há zonas cinzentas onde a discordância entre os vários parceiros é clara. As primeiras questões que se podem revelar fraturantes estão na política externa: os Verdes são muito mais duros com a Rússia do que o SPD pretende ser e, se a crise na fronteira ucraniana se agravar, há o risco de a ministra Annalena Baerbock (Verdes) querer ir mais longe do que o próprio chanceler; da mesma forma, os Verdes quererão ser mais duros com a China, mas liberais e sociais-democratas são mais sensíveis à dependência financeira que as empresas alemãs têm do mercado chinês. Por força dos acordos negociais, há também uma distribuição de pastas que se pode revelar problemática. É certo que todos conseguiram o que queriam, tendo o líder dos liberais, Christian Lindner, garantido a toda-poderosa missão de chefiar as finanças; ao mesmo tempo os Verdes ficaram com um superministério de Assuntos Económicos e Ambiente, que foi entregue ao vice-chanceler Robert Habeck. Isso dará a Habeck poder na gestão dos dinheiros para a energia, incluindo os muito discutidos subsídios para combustíveis fósseis, e a Lindner veto sobre os planos de investimento na transição verde. Pelo meio ficam questões como a reforma fiscal, onde os partidos têm visões marcadamente diferentes. Mas a “coligação do semáforo” (nome dado graças às cores dos partidos envolvidos) tem também muito em comum, pelo que não faltarão áreas para explorar a inusitada parceria.
Não sendo estruturalmente uma estreia no poder para estes membros de coligação, a verdade é que quer liberais quer verdes são muito diferentes dos partidos que em tempos partilharam responsabilidades governativas. Os liberais estiveram no segundo governo de Merkel, em 2009, mas a experiência revelou-se desastrosa: na eleição de 2013 perderam toda a representação parlamentar, passando de 93 deputados para zero; a crise económica levou ao abandono de todas as promessas aos eleitores, que castigaram o partido em função disso. Depois de um processo de reformulação doloroso, quatro anos depois recuperaram 10% dos votos e agora conseguiram ser parte da solução de governo, completando a reformulação iniciada pelo líder Lindner há oito anos: “A abordagem à governação de Lindner está ostensivamente aberta aos Verdes e, em certa medida, também aos sociais-democratas. A sua sensibilidade às questões ecológicas tem sido uma característica tão importante da sua campanha política que uma coligação verde-amarela já seria mais provável desde o início da última legislatura. No que diz respeito ao projeto de liberalização da sociedade, eles convergem facilmente”, refere Claudia Gatzka, professora e investigadora da Universidade de Friburgo na área das coligações políticas.
Já os Verdes tiveram a última experiência de governação na viragem do século, nos dois governos liderados por Gerhard Schroeder, entre 1998 e 2005. Ambos estiveram prestes a formar Governo com Angela Merkel em 2017, mas as negociações ruíram quando os Liberais as abandonaram — com o seu líder a proferir a frase lapidar: “É preferível não governar do que governar mal.” Isso abriu caminho para a atual liderança bicéfala dos Verdes, que tem sido bem sucedida e agora se concretiza com uma coligação que está a anos-luz daquela que foi protagonizada por Joschka Fischer na mudança do século. “Os Verdes tornaram-se ‘capazes de governar’, para recordar um termo influente na linguagem política alemã (indicando a reprovação da política fundamentalista)”, prossegue Claudia Gatzka. “A geração líder dos Verdes de hoje orientou a sua política principalmente para a governabilidade, enfatizando questões de acessibilidade de transformações ecológicas para os pobres bem como para a economia, e reconhecendo o importante dogma dos Conservadores, Liberais e Sociais-Democratas que a Alemanha é e deve continuar a privilegiar as indústrias.”
Já o chanceler Olaf Scholz está bastante mais habituado a estas voltas. O SPD passou os últimos quatro anos como parceiro minoritário do governo de coligação de Angela Merkel e, por isso, Michael-Meyer considera que ele sabe bem “analisar o momento”. “Acho que Scholz tem um bom faro para isto — ele era um parceiro júnior, por isso sabe melhor como é estar nessa posição. Mas também penso que Scholz é um político que compreende o poder e está a jogar a longo prazo.”
Claro que todos os sistemas são um reflexo do seu povo e da sua história, e neste caso Claudia Gatzka oferece uma leitura à luz dos valores alemães de base. “O principal ethos da cultura política alemã, ainda mais depois de Hitler, é a racionalidade. Os alemães do pós-guerra adoram a ideia de uma política sóbria e admiram o sucesso e eficiência na política, em vez de ideias de justiça ou outras questões suscetíveis de serem descartadas como ‘ideológicas’ — e de facto, os interesses ‘ideológicos’ são no discurso político alemão entendidos como prejudiciais ao ideal de comunidade, ao qual, inversamente, o sucesso e a eficiência podem servir. Neste contexto, esta coligação e a forma como foi estabelecida refletem e abordam bastante bem a virtude da cultura democrática na Alemanha. No entanto, a partir de agora, só vai contar o sucesso político.”
Valerá por isso a pena apostar num acordo governamental em Portugal, independentemente do modelo formal ou informal de coligação? Pedro Magalhães considera que “não é fundamental que exista um acordo escrito”. “Esse pormenor é mais um reflexo da solidez do acordo do que a causa dessa solidez; mas o escrito significa o conjunto de compromissos que vinculam pelo menos as lideranças dos partidos.” E reforça que o mais importante não é fazer uma coligação, é que ela faça sentido. “Sim, uma solução minoritária é sempre menos estável, e sabemos que esses governos sobrevivem menos tempo. Mas também sabemos que quanto mais incongruente for o acordo, quanto mais diferentes os partidos forem entre si, mais instável será uma coligação.” E a maturação dos partidos também conta: não é incomum que a falta de preparação para ser parte de uma solução de governo faça parte destas novas forças políticas. Aí está outra lição a retirar da Alemanha: o pragmatismo face ao exercício do poder e à capacidade de alterar a realidade.
Um último aspeto que os comentadores da situação política alemã analisam como relevante é a resistência à partilha de poder com a extrema-direita. Michael Meyer Resende considera que a Alemanha deu um bom exemplo ao resto da Europa. “O que funcionou bem na Alemanha é que não nos deixámos tornar reféns do extremismo — e penso que esta é uma boa lição para o resto da Europa. Não permitir que estes partidos dominem o discurso, ignorá-los tanto quanto possível e não lhes oferecer credibilidade. Se lhes concedermos muito tempo nos meios de comunicação social e no debate público, emprestamos-lhes uma credibilidade que eles não têm. Evitámos isso e agora a AfD parou de crescer. Todos os partidos devem ser claros na demarcação das suas linhas vermelhas e recusar alianças com extremistas. Ao mesmo tempo, seria bom não falar demasiado deles, para não lhes dar uma atenção desmedida.”
Claudia Gatzka vê a mesma questão de um ponto de vista mais complexo. Visto que o partido mais extremista, a AfD, considera ser a voz do antissistema, refere Gatzka, “qualquer estratégia deve combater esta lógica do sistema como algo que está contra os interesses das pessoas”. “Creio que se devem tomar medidas contra um discurso que alimenta uma imagem de ‘o sistema’ como algo estranho ou mesmo hostil para ‘o povo’. Esta ação tem tudo a ver com uma comunicação política transparente, a explicação de políticas através dos representantes eleitos, e a demonstração honesta de alternativas políticas pelos partidos do ‘sistema’. Isto requer, por sua vez, a discussão aberta de conflitos e interesses divergentes no seio das nossas sociedades plurais. Poder-se-ia argumentar agora que esta exigência parece estar em desacordo com a perceção da fragmentação do sistema político em muitos países. Não creio, contudo, que esta fragmentação reflita um sentido crescente do sistema — e da forma como comunica — para a pluralidade de interesses políticos. É antes uma representação da pluralidade política sem a capacidade da maior parte dos políticos (e eleitores) de articular e moderar interesses e ideias conflituosas dentro e na comunidade política”, concretiza.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL