A polémica Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital aprovada na Assembleia da República não reúne aprovação entre os especialistas e alguns não hesitam em considerá-la um “regresso à censura”.
A lei, que entrará em vigor no dia 17 de julho, tem gerado controvérsia principalmente por causa do seu artigo 6.º, que prevê a “atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas apoiadas pelo Estado” é vista por muitos como um “regresso à censura” e uma lei digna de uma ditadura.
A Carta foi recentemente promulgada pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa e aprovada por maioria no Parlamento, em abril, com a abstenção do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal.
Depois de aprovada, a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital (lei n.º 27/2021) foi contestada por partidos e figuras políticas por colocar em causa a liberdade de expressão, ameaçada pelo artigo 6.º, que prevê o apoio do Estado à “criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados” e “incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.
O partido Iniciativa Liberal acusou o projeto de “contraditório”, uma vez que declara a internet como espaço de liberdade, mas que através do que está pressuposto no artigo, seria “um primeiro passo para a criação de um Ministério da Verdade”.
Já o Sindicato dos Jornalistas (SJ) foi mais longe e requereu à Procuradoria-Geral da República e à Provedoria de Justiça que suscitem, junto do Tribunal Constitucional, a constitucionalidade do artigo 6.º da Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital.
Para o SJ deveria ser retirado o teor do artigo 6.º, e repensada a forma de proteção contra a desinformação, “que deve ter, designadamente, em conta a diferença entre a desinformação que seja reproduzida e divulgada por órgãos de comunicação social e a que não seja (artigo 7.º)”.
No entender do SJ “a criação de um conceito de ‘desinformação’ com consequências jurídicas ao nível sancionatório é inaceitável”.
Além disso, os quadros sancionatórios relativos ao exercício ilegítimo da liberdade de expressão estão criados e não carecem de ser “acrescentados” para abranger esta “nova” situação de “desinformação”, refere o SJ em comunicado.
Segundo o constitucionalista José Carlos Vieira de Andrade, em declarações à Lusa, “os termos em que a Carta está redigida, sobretudo por utilizar conceitos indeterminados, pode levar, de facto, a uma restrição da liberdade de expressão”.
“Apesar de não ser comparável em termos perfeitos com a ditadura de 1926 vivida em Portugal, este artigo pertence à família das censuras”, sublinha o constitucionalista.
Para Carlos Magno, jornalista e antigo presidente da ERC, é importante discutir a temática da desinformação, mas “não se pode legislar o digital com pensamento analógico, porque tem regras e características próprias”.
O jornalista critica a unanimidade aquando da aprovação do documento e defende que a função do regulador é dar confiança aos cidadãos através da certificação permanente daquilo que é publicado.
“O Estado não deve intervir. Este tipo de censura não é exagerado em países como a Hungria, em Portugal deveria ser diferente”, comparou Carlos Magno.
Também para o jornalista e investigador em comunicação digital, Miguel Crespo, as críticas à Carta foram tardias, o que revela alguma desvalorização do tema no Parlamento.
“O Parlamento deve agir como um todo e deve ser responsabilizado porque deixaram passar algo que contém parâmetros nitidamente graves, deviam estar nitidamente distraídos.”
Para o especialista, o diploma aborda questões muito complexas e de difícil compreensão, como a identificação da origem do conteúdo falso e medir qual a intenção da publicação dessa informação.
“É muito complicado identificar as fontes originais de uma qualquer produção de desinformação, ao mesmo tempo que não conseguimos entender se a pessoa que o reproduz teve o objetivo de desinformar. É algo completamente discriminatório, tentar definir as intenções”, acrescentou.
Miguel Crespo classificou o artigo 6.º do documento como um “perfeito disparate” porque obriga a estarem registados na ERC os meios produtores de ‘fake news’, que ao mesmo tempo poderão verificar, também eles, o conteúdo falso.
“A partir do momento em que se põe em causa a avaliação dos conteúdos, em que se quer discriminar o que é fidedigno do que não é, em que uma entidade aceita registos de meios comprovadamente de desinformação e é juiz do que é informação ou não, é um texto que facilmente passava como lei em qualquer regime ditatorial”, salientou Miguel Crespo.
O político e professor universitário Miguel Poiares Maduro afirma que “a carta tem aspetos positivos, mas a forma como está redigido o artigo 6.º é infeliz e abre a porta a leituras perversas, como a de que a ERC passa a ser o que define o que é verdade do que é mentira”, sublinhou.
O político considera que a forma como a União Europeia tem abordado o problema da desinformação nas redes sociais tem sido mais prudente e mostra a cautela com que este tipo de assuntos é tratado.