A problemática da possibilidade de Fernando Pessoa ter eventualmente assumido posições racistas foi abordada pela primeira vez na Festa Álvaro de Campos, na edição de 2016. Tratou-se de um espectáculo com encenação e roteiro de Tela Leão intitulado Os Filhos do Fogo de Deus, que coligiu textos de vários autores. Esta expressão que dá título ao espectáculo provém de um sermão do Padre António Vieira em que se promete uma carta de alforria a todos os escravos, na vida para além da morte: “Vós sois filhos do fogo de Deus (…) porque o fogo vos imprimiu a marca de cativos (…) também o fogo vos alumiou, porque vos trouxe a luz da fé e dos conhecimentos dos mistérios de Cristo. (…) a melhor parte do homem, que é a alma, é isenta de todo o domínio alheio, e não pode ser cativa.”
O padre António Vieira dedicou grande parte do seu esforço não apenas à consolação das almas das minoria oprimidas, mas também activamente à sua defesa. Na sua brilhante carreira diplomática defendeu junto da coroa portuguesa os direitos dos judeus e dos povos indígenas escravizados no Brasil. Pergunto-me, pois, como é que é possível terem vandalizado a estátua do Padre António Vieira nas manifestações anti-racistas que recentemente ocorreram em Lisboa.
Na encenação de Os Filhos do Fogo de Deuso texto que incendiou os ânimos, tanto do público como dos actores, foi o seguinte parágrafo atribuído a Fernando Pessoa:
“A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente quer de outra forma qualquer, é querer dar-lhe aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização. Escravizá-lo é que é lógico, o degenerado conceito igualitário, com que o cristianismo envenenou os nossos conceitos sociais, prejudicou, porém, esta lógica atitude.” Fernando Pessoa in Sobre Portugal – Introdução ao Problema Nacional.
Foi este mesmo texto que despoletou a oposição Luzia Moniz à proposta de se dar o nome do poeta a um programa académico de intercâmbio, semelhante ao programa Erasmus, mas de abrangência restrita aos países de Língua e Cultura Portuguesa. Gerou-se uma enorme polémica! A presidente da Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana (PADEMA), num artigo de opinião publicado no jornal de Angola acusou Pessoa de ter sido um “escravocrata racista, que não pode ser indicado para patrono de um projecto cujos beneficiários são maioritariamente jovens descendentes de escravizados”.
O controverso texto atribuído ao poeta, e cuja data se desconhece, encontra-se disponível no arquivo Pessoa on lineno seguinte endereço: http://arquivopessoa.net/textos/1013. Foi também publicado numa recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão editados pela Ática em 1979.
O investigador José Barreto, que trabalha há 15 anos no espólio da obra de Fernando Pessoa, afirma que esta acusação não tem fundamento. Considera que o equívoco deriva do facto de desde os anos 80 se terem vindo a publicar “muitas centenas de coisas que Pessoa nunca pensou publicar, muitos leitores simplesmente não distinguem entre o que ele deu ou pretendia dar à estampa e oque atirou simplesmente para a mala em que guardava tudo o que escrevia, mesmo certas parvoíces (acontece a todos) que rabiscava em papelinhos, eventualmente com uns copinhos já bebidos. Pessoa não atirava nada fora: podia era escrever outros papelinhos a dizer o contrário do que tinha dito nos primeiros. Acontecia-lhe isso muito frequentemente.”
Na mesma linha de raciocínio Teresa Rita Lopes, uma das principais investigadoras da obra do poeta, explica que o mal entendido acontece porque “as pessoas esquecem que quando atribuem frases ao poeta estão a tirá-las de uma das suas personagens, porque toda a obra do Pessoa é uma obra de teatro. Pessoa desdobrou-se em personagens que, naturalmente, se contrariam umas às outras”. Neste caso específico, Pessoa terá inventado um personagem a quem chamou António Mora para quem a escravatura era algo natural.
No mesmo sitepodemos encontrar outros textos polémicos sobre este tema, igualmente atribuídos ao poeta, a título de exemplo:
“Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social. Ninguém o provou, porque ninguém o pode provar. Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs? Ninguém o pode dizer, porque ninguém sabe quais são as leis naturais da vida das sociedades e essa pode portanto ser uma delas. A velha afirmação de Aristóteles — aliás tão pouco propenso a soluções ‘tirânicas’ — de que a escravatura é um dos fundamentos da vida social, pode dizer-se que ainda está de pé. E ainda está de pé porque não há com que deitá-la abaixo.” in Fernando Pessoa, Régie, Monopólio, Liberdade http://arquivopessoa.net/textos/2397
Sobre o posicionamento de Aristóteles relativamente à escravatura muito há a dizer, mas escasseiam os caracteres para poder seguir tal trilho neste artigo.
Regressando ao texto acima citado, ele vem referenciado como tendo sido publicado pela primeira vez em 1926 na Revista de Comércio e Contabilidade.Se estes dados forem correctos trata-se de uma publicação em vida do poeta que teria então 38 anos. Não se trata, portanto, de um texto de juventude onde um Pessoa ainda imaturo e envolto pelo clima de apartheidque experienciou na África do Sul expressasse a sua opinião imberbe influenciado pelas circunstâncias do momento.
Pessoa trabalhou como correspondente comercial em várias empresas da Baixa lisboeta interessando-se também por temas ligados ao comércio. Tratava neste escrito da questão chamada “dos tabacos” onde se tenta apurar se se deve preferir o sistema de administração de Estado ou régie, o sistema de monopólio privado, ou o sistema de concorrência livre.Pessoa escreve que “A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acordo com os nossos sentimentos de equidade, pode ser contrária a qualquer lei natural, pois pode bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa ‘justiça’ e em nada se ajustem às nossas ideias do que é bom e justo”. Daqui decorre que quando o poeta estabelece um paralelismo entre a lei da natureza e a lei das sociedades expressa justamente a injustiça que pode vigorar sob elas. Injustiça essa que permite atrocidades como a escravatura.
Como se pode verificar, são de crucial importância as fontes e o contexto. Ora não se pode pedir a um público não especializado que deslinde fontes, esclareça proveniências, averigue datas. Esta é precisamente a tarefa dos especialistas que, justamente, se deveriam responsabilizar pelo modo como a informação é facultada ao público em geral. O arquivo on-line que venho citando neste artigo, por exemplo,poderia e deveria conter alguma nota onde se indicasse a possibilidade de determinados textos pertencerem a personagens, como é o caso do racista esclavagista António Mora, e não ao próprio poeta. Aqui fica o meu apelo! Assim se evitariam calamitosas mas quiçá inadvertidas desonestidades intelectuais.
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de outubro)