Na ponta do seu dedo há um enigma. Se observar com atenção, começará por observar como a pele se apresenta num desenho complexo de arcos, planuras, desvios, convergências. Entre 8 biliões de pessoas não encontrará outra impressão digital exatamente como a sua. Isto parece ser verdade mesmo entre gémeos monozigóticos, que, apesar de geneticamente idênticos, desenvolvem impressões digitais diferentes em função da influência do ambiente dentro do útero. Para além de único, este desenho manter-se-á igual ao longo da sua vida e mesmo que a sua pele seja rasgada, a sua impressão digital irá regenerar-se exatamente segundo o mesmo padrão.
Esta foi talvez a forma que a natureza encontrou de nos dizer que somos únicos. Mas ainda que não o fizesse, cada pessoa seria capaz de o intuir. Todos sentimos que, na essência, somos únicos e diferentes de todas as outras pessoas. Esta sensação “interior” de que somos únicos relaciona-se com aquilo que entendemos por identidade. É inevitável questionar o que será que cimenta esta sensação de sermos únicos mesmo quando tudo muda à nossa volta, desde o momento em que nascemos ao momento em que desaparecemos. Por outras palavras, somos sempre os mesmos ao longo da vida? Somos a mesma pessoa aos 6 meses e aos 80 anos?
A questão da personalidade
Uma das questões mais importantes desde que a humanidade evoluiu para pensar sobre si própria é a de saber em que medida agimos segundo as nossas disposições naturais ou em função das circunstâncias. A razão pela qual se ensina desde cedo a nunca dizer “desta água não beberei” é porque se sabe que as circunstâncias extremas podem levar a que uma pessoa se comporte de forma muito pouco própria de si mesma. E são vários os exemplos quotidianos em que justificamos o nosso comportamento em função dos acontecimentos: porque se dormiu pouco, porque se sofreu um sobressalto, porque o trânsito estava caótico, porque se entalou o dedo mesmo com muita força. É fácil entender porque é que as circunstâncias importam. Ainda assim, existe uma tendência para pensarmos, sentirmos e agirmos de uma forma que é mais previsível do que imprevisível. Por outras palavras, apesar destas variações, há um certo fio condutor que faz com que seja possível descrevermos qualquer pessoa segundo certos traços: simpático/a, tímido/a, responsável, ansioso/a.
Os traços de personalidade são simultaneamente estáveis e flexíveis. De acordo com um estudo recente de investigadores da Universidade de Zurique, que avaliou mais de 300 estudos com cerca de 280.000 participantes, a estabilidade dos traços de personalidade varia ao longo da vida. A adolescência e início da idade adulta são os períodos mais críticos para o desenvolvimento da personalidade, atingindo-se um período de maior estabilidade a partir dos 25 anos. A maior parte dos traços mantém-se estável ao longo da idade adulta, no entanto, nem todos os traços evoluem de igual forma. Por exemplo, características como a abertura à experiência ou a extroversão podem sofrer declínios nos adultos mais velhos, mas traços como a estabilidade emocional, pelo contrário, podem trazer ganhos com a passagem do tempo.
Quando a personalidade “desaparece”
Enquanto estas mudanças acontecem de forma gradual para a maior parte das pessoas, há alguns casos mais raros em que uma personalidade pode mudar “do dia para a noite”. Um dos exemplos mais famosos (e fascinantes) da história é o de Phineas Gage (1823-1860). Phineas foi um operário de caminhos de ferro que, num acidente com explosivos, viu o seu crânio ser atravessado por uma barra de ferro com mais de um metro de comprimento. Contra todas as probabilidades, Phineas sobreviveu a este evento, mas as sequelas torná-lo-iam num caso de estudo para a ciência recordado até aos dias de hoje.
Ao que tudo indica, não chegou a perder a consciência e teve presença de espírito suficiente para cumprimentar o médico local, Dr. John M. Harlow, de forma espirituosa “aqui tem quanto baste pare se entreter”.
O tratamento de Phineas Gage foi um sucesso e, meses mais tarde, estava de regresso ao trabalho. Mas o aparente milagre tinha um senão. Phineas não era mais Phineas, conforme notaram os seus amigos mais próximos. O confiável e eficiente trabalhador tinha agora um temperamento irascível, caprichoso, errático e impulsivo e foi incapaz de manter o emprego por muito tempo.
A história do jovem operário é considerada como o primeiro caso de estudo neurocientífico a demonstrar a influência de lesões cerebrais (córtex prefrontal) na mudança de personalidade. Mais recentemente, têm sido descritas mudanças de personalidade na sequência de alterações cerebrais mais comuns, como é o caso de acidentes vasculares cerebrais ou demências (e.g., Alzheimer). Entre as mudanças mais subtis e prolongadas às mais drásticas e repentinas, tudo parece indicar que aquilo que faz de nós quem somos é resultado de um equilíbrio mais sensível do que se possa imaginar.
O que os amigos de Phineas Gage sentiram ter assistido foi o desaparecimento de alguém antes da própria morte. Esta constatação leva-nos a crer que, ao contrário da impressão digital, a identidade não se regenera sempre segundo os mesmos contornos.