Se o nosso corpo é constituído em 60% por água, porque é que a água não cai no chão? A razão chama-se Fáscia e é um novo órgão, que envolve tudo e mais alguma coisa, literalmente dos pés à cabeça.
A melhor metáfora para explicar o que é fáscia é pensarmos numa meia laranja. O que vemos? Por fora temos aquela parte laranja, rugosa, que representa a nossa pele. Por dentro, vemos montes de saquinhos, cheios de líquido, o sumo da laranja. E esses saquinhos estão organizados dentro de outros saquinhos maiores, a que chamamos gomos da laranja, para nós, compartimentos. E ainda vemos umas partes mais grossas e contínuas, tipo membranas, de cor amarelo-manteiga, mesmo coladas à pele, e umas outras, mais ou menos finas, filamentos, que penetram por ali a dentro com espessuras diferentes.
Tudo o que é amarelo-manteiga, nesta metáfora, é fáscia – na prática, tecido conjuntivo de elevada densidade, que ‘agarram’ músculos e também compõem os ossos, mas que tem comportamento próprio bem ativo.
A fáscia corresponde a 30% em peso do corpo humano, tipo 22 quilogramas, e não tem princípio nem fim – está por todo o lado, é uma rede que conecta tudo, está dentro de tudo e oferece estrutura. Só com ossos e músculos, não nos aguentaríamos de pé.
A fáscia tem de seis a dez vezes mais terminais nervosos do que o tecido muscular. Quando doi, tem muito mais probabilidade de ser da fáscia do que do músculo.
É o nosso maior órgão envolvido na propriocepção, ou seja, a capacidade de sabermos onde estamos e como nos movemos e na nocicepção, ou a capacidade de informar o cérebro de estímulos perigosos como danos nos tecidos ou temperaturas elevadas. (Grandes palavrões, eu sei, mas já passou …)
Essa função de órgão da fáscia, só foi “descoberta” há pouco mais de 20 anos – o primeiro congresso científico realizou-se em 2007. Antigamente, a fáscia era considerada um desperdício e deitada fora, nas autopsias, pelos anatomistas, que precisavam de se desembaraçar de tudo aquilo, para conseguirem chegar aos órgãos do corpo humano, que era o que os interessava. Não desfazendo, é mais ou menos como a história do Clitóris que só foi definitivamente e precisamente descrito anatomicamente, em 2005.
A fáscia é constituída basicamente por três coisas: as fibras, que fornecem a rigidez e a elasticidade que estruturalmente precisamos; um gel aquoso, que contem água, obviamente, e também o famoso ácido hialurónico do qual hoje tanto se fala, que permite o deslizar e o escorregar dos vários compartimentos contíguos; e células, que são várias, dependendo do tecido que falamos, mas onde as mais abundante são os fibroblastos, umas células pequeninas, que se movem livremente pela matriz extra-celular, liquida, e são como aranhas que fabricam teias… de colagénio., que é a estrela desta história.
O colagénio é uma proteína muito interessante. Possui propriedades mecânicas bem definidas (grande resistência, extensibilidade reversível em apenas uma pequena gama) que o tornam adequado aos fins especiais para os quais é colocado no corpo animal, como nos tendões, ossos, presas, pele, córnea do olho, tecido intestinal e provavelmente bastante extensivamente nas estruturas reticulares das células.
Linus Pauling, 1953 (Ver link)
Colagénio é a proteína mais abundante do corpo humano, que se apresenta como uma estrutura de tripla-hélice, (Pauling e Corey, 1951), que se organiza, ou desorganiza, em forma de rede continua e que interpenetra todos os órgãos e estruturas do nosso corpo.
Quando mais organizada, é uma rede mais densa e mais rígida, como nos tendões, mas, na sua maioria, aliás 70%, apresenta-se desorganizada, ainda assim resistente, mas flexível e maleável. profusamente enervada e por onde passam os vasos sanguíneos e linfáticos.
A fáscia, que existe em forma sólida, mas também em forma líquida, na matriz extracelular, comunica quinze vezes mais rápido do que o tecido nervoso.
E quem é, quem é, que está diretamente envolvida na síntese desse colagénio?
(Esperemos pela vossa resposta… um… dois … três … não vale espreitar …).
Adivinharam! A Vitamina C!
Falta vitamina C: e aí vem a aterosclerose ou as varizes, porque sem colagénio, o tecido epitelial do interior dos vasos sanguíneos fica fraquinho e não aguenta o stress do dia e dia e dos anos a passar. Falta vitamina C: e aí vêm as dores nas costas e nas articulações, porque de colagénio são feitos as cartilagens e os tendões. Falta vitamina C: e chegam as rugas, na pele e a osteoporose, nos ossos. Falta vitamina C: e a malta não pensa como pensava, porque é preciso vitamina C para a maturação das células nervosas e comunicação entre elas.
(Se faltarem os aminoácidos que são os constituintes do colagénio, também tudo isto acontece, óbvio).
A vitamina C que ingerimos, pois não a fazemos, nem a conseguimos armazenar, usa os glóbulos brancos como veículo de transporte para atuar como primeira linha de defesa do corpo, para nos proteger dos organismos invasores. E, portanto, sob quantidade insuficiente para ir a todas, a vitamina C fica naquela situação ingrata – ir primeiro lutar contra os invasores, ou ir a correr participar no processo de reparação dos tecidos. É como um cobertor curto, quando tapa os pés, destapa a cabeça.
Voltando à fáscia. E as contraturas? Contraturas é um problema de fáscia, não é de músculos, revela a investigação (Ver link e link). Quem não tem contraturas? Eu tenho. Ás vezes. Nem sempre. E doi imenso aqui por trás do pescoço ou nas “cruzes”. Mas quando tenho aí vou eu a correr para o salão de acupuntura mais próximo tentar resolver a coisa, depois de ter gasto, sem sucesso, uma bisnaga de qualquer coisa em gel. E normalmente, para mim, essa acupuntura funciona. Porque será?
E aqui vão-me desculpar, vou ter de usar uma explicação que achei muito interessante, mas que não sei quão cientificamente suportada, embora suportada por um conhecido investigador alemão, que estuda a fáscia, o Prof. Robert Schleip, da Universidade de Hamburgo, que tenho andado a estudar, numa vertente a que ele chamou Fáscia Fitness. (Que fino!)
Ele formulou como hipótese que o que funciona na acupuntura (e também reconhece que não sabe o suficiente sobre o suporte científico dos tais meridianos), pode ser o seguinte mecanismo: ao espetar aquelas agulhas na pele, passando a epiderme e chegando ao tecido conjuntivo, as células fibroblastos vão a correr para esse local e começam logo, logo, a fazer a sua teia de colagénio, à volta da agulha. Aí, o acupunturista gira levemente essa agulha e o que acontece? Esse movimento espalha-se por toda a região, porque tudo está conectado por essas fibras de colagénio em rede, quando puxa de um lado, repuxa do outro, porque tudo é permeado por fáscia. Quando a fáscia está “contraída”, pressiona os nervos que por ali passam e provoca a dor, quando é “mexida”, essa pressão desaparece, eventualmente, e a dor também desaparece.
Pouco a pouco este conhecimento sobre o que é a fáscia foi-se propagando para os especialistas do tratamento de situações que envolvem dor, fisiatras e fisioterapeutas, e das ideias de Thomas Meyer, aparece o conceito de “Anatomy Trains” (marca registada), tradução comboios anatómicos, ou meridianos mio-fasciais (mio, vem de músculo), que são linhas conectadas, continuas que atravessam o corpo, superficialmente ou mais profundamente, pela frente, por trás e pelos lados, num total de doze linhas, que mapeiam o corpo humano. Todas essas linhas têm estações, ou pontos de correspondência, onde confluem várias linhas.
Uma delas, a Espiral, (na prática, são duas, praticamente simétricas, e se não estão simétricas é mau sinal), é a mais gira e também a menos óbvia. São duas linhas, que começam por trás da cabeça, cruzam nas costas junto ao pescoço, passam por baixo das omoplatas e seguem para a frente do corpo onde se cruzam na barriga, vão até às ancas para depois descerem pelas pernas abaixo, cruzando do lado de fora e para o lado de dentro, em espiral, dão a volta ao pé na zona do arco, e sobem pela perna acima, também em espiral, até à anca, cruzam nas “cruzes”, continuando depois paralelas à coluna, até novamente à cabeça, passando por umas vinte estacões, onde fazem correspondência com outras linhas (Ver link).
E a teoria diz que, se há uma dor, é porque aí a fáscia está contraída, emaranhada, ou rígida, fibrolizada, como compensação a uma parte mais lassa, algures, algures mais perto, ou mais longe. O tratamento mais eficaz, defendem, será fortalecendo essa zona de fáscia mais lassa e não atuando diretamente no local da dor, onde pode provocar mais inflamação e, portanto, mais dor.
Deixando a dor e mirando performance, outra aplicação deste novo conhecimento mostrou-se particularmente útil para os atletas de alta competição, por exemplo do basquetebol ou da luta, que saltam muito. Sabiam que um canguru, se o obrigarem a andar 100 metros, gasta muito mais energia do que se o deixarem fazer essa distância aos saltinhos? Tem tudo a ver com a elasticidade do seu equivalente tendão de Aquiles, que reage mais como uma mola do que a uma simples resposta a contração muscular, ao que chamaram mecanismo de catapulta (Ver link). E acontece que os investigadores descobriram que nós, humanos, partilhamos essa característica do canguru. Parece que o segredo é correr com os glúteos ativados e pisar com a ponta do pé, sem pousar o calcanhar para que ele funcione como uma mola. Será?
E claro, para os mais mundanos, que pensam de uma “fascia facelift” autoministrada?
Pesquisem, estudem. Tudo isto é novo, tudo isto é fascinante.
(continua na próxima semana)
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