Em homenagem às suas mil faces de genialidade, o POSTAL reproduz aqui um artigo publicado na sua edição de 25 de março de 2004.
À sua querida mulher, Juliana Feitor, pedimos um testemunho na primeira pessoa, cujo conteúdo partilhamos no final deste artigo.
Poeta, pensador, prosador, jornalista, docente, sindicalista, político apaixonado pelo teatro, com um humor vivo, sempre pronta a crítica mordaz e bem disposta dos males que por cá vão num país à beira-mar (mal) plantado. Uma daquelas pessoas que mesmo que morram com cem anos sempre vão cedo demais. Humberto Fernandes partiu com 48 anos, mas deixou-nos muito, um legado de riso e esperança num país e num mundo onde os motivos para isso parecem ser cada vez menos.
Profissão: professor. Com isso ganhava a vida que o resto vinha por amor à arte e por uma necessidade de não calar o que sentia necessitar de um bom abanão. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade Clássica de Lisboa, era professor do quadro da Escola Secundária Dr. Francisco Fernandes Lopes, em Olhão.
Pedagogo nato, foi na Escola Secundária Tomás Cabreira que iniciou a carreira docente. Foi em 1976/77 que “assentou arraiais” em Olhão, onde se manteve até ao fim da vida, com uma passagem de dois anos pela Escola Secundária de Vila Real de Santo António. Professor de Língua Portuguesa, desdobrava-se em mil facetas para tornar agradáveis as aulas de uma disciplina tantas vezes vista pelos alunos como um “pincel”, ombreando com a matemática, com os resultados escolares que todos sabemos.
Da qualidade de professor, profissão tantas vezes mal amada, muitas vezes mal entendida, tantas vezes a remar contra a maré da falta de recursos e de um Estado quase sempre autista e muitas vezes surdo às necessidades de docentes e alunos veio, naturalmente, a veia de sindicalista.
Um sermão aos peixes
Como sindicalista, fizeram história as suas colaborações no Jornal Intervir, do Sindicato dos Professores da Zona Sul (SPZS). Célebre ficou o seu “Sermão do SPZS aos peixes”, uma pregação “aos peixes” com muitos recados para o então manda-chuva do Ministério da Educação, Couto dos Santos. Publicada no “Intervir” a pregação foi protagonizada pelo próprio em manifestação de docentes na Doca de Faro, no dia 27 de maio de 1993.
As queixas, feitas a ouvidos tantas vezes tão surdos como os dos peixes, eram as mesmas de hoje: falta de condições de trabalho e de recursos para ensinar seja o que for, dificuldades na progressão nas carreiras, falta de estabilidade profissional, restrições à formação profissional contínua de professores e, a completar tudo isto, uma completa falta de diálogo. Desenhava-se também já então uma Reforma Educativa feita, ontem como hoje, sem ouvir or principais interessados na dita: os professores.
Todos estes “recados” foram dados, à maneira de Santo António e do Padre António Vieira, aos peixes da Doca de Faro, com indicação para dar o recado aos políticos de Lisboa, uma vez que eram as águas do Algarve “as mesmas águas em que os políticos de Lisboa se banham”. “Aos mais duros de ouvido” recomendava ainda o sindical pregador “Não hesiteis, pedi aos irmãos peixe-aranha que lhe chamem devidamente a atenção”.
Couto dos Santos ouviu/leu (se é que leu) o que não quis, numa ação que foi das primeiras do género realizadas no país e que tinha por objetivo alertar a opinião pública com ações alternativas à greve. Uma prática hoje frequente, mas que naquele só passava pela cabeça de alguns “génios de serviço”.
Muitas foram as ações do género promovidas ao serviço do SPZS e da Fenprof por parte deste sindicalista que, à maneira do mestre Gil Vicente, a rir ia castigando os (maus) costumes do Ministério da Educação.
Na última fase da sua vida, continuou a atividade sindical no SINDEP, afeto à UGT. No âmbito daquela estrutura sindical, foi nomeado coordenador do pólo de Faro da Escola Profissional Agostinho Roseta, tratando de dar um novo dinamismo àquele estabelecimento de ensino.
“Ti Bia” matreira não poupava ninguém
“Nota da Redação: Nascida no Sítio da Boa Vista, concelho de Olhão, a Ti Bia radicou-se há muito em Tavira, onde é estimada por toda a gente em Tavira pelo seu sentido crítico e pelo facto de não ter papas na língua. Algarvia matreira, nada lhe escapa. Quando e onde nem se espera ela lá está, mesmo sem ser convidada. A partir de hoje, a Ti Bia tem o seu espaço próprio no Postal de Algarve”.
Assim estavam feitas as apresentações das “Bocas da Ti Bia”, secção que Humberto Fernandes assinou no POSTAL. As “Bocas da Ti Bia” não poupavam ninguém. Eram os primeiros anos do POSTAL e Humberto Fernandes, a quem também mordia o “bichinho” do jornalismo não hesitou em emprestar-lhe a sua inesgotável veia criativa, aqui desdobrando-se em bocas satíricas, verdadeiros “tiros em cheio no alvo”. As primeiras “Bocas da Ti Bia” foram publicadas na edição n.º 29, em 11 de maio de 1989.
No POSTAL publicou também artigos de opinião, tendo o primeiro sido na edição n.º 20, publicada em novembro de 1988. Foi ainda chefe de redação de janeiro a outubro do ano de 1989. Comunicador por excelência, a sua passagem pelas lides do jornalismo não podia resumir-se a isso. Foi durante vários anos colaborador permanente da RDP Algarve. Aí “assinou”, entre outros, o programa “Abracadabra”, transmitido entre as 7 e as 10 horas da manhã, que foi na época um programa muito popular e de grande audiência.
Foi também protagonista do programa “O Algarve concelho a concelho”, um dos melhores programas de informação da RDP, realizado em parceria com Humberto Ricardo e o “monstro sagrado” Sena Santos.
Por razões profissionais, saiu da RDP, mas o “bichinho” da rádio voltou a não lhe dar sossego com o aparecimento das rádios locais. A Rádio Restuaração de Olhão ofereceu-lhe o cargo de Diretor de Informação, onde se manteve vários anos. Também colaborou pontualmente com a Rádio Televisão Atlântico. Com uma cultura sólida, orador por excelência, nunca lhe faltaram também convites para a participação em conferências, palestras, colóquios e debates sobre os mais variados temas. Participações onde se revelava um génio reservado a uns poucos e uma capacidade de comunicação daquilo que se sabe reservada a muito menos ainda.
Um político “anti-tachos”
Humberto Fernandes foi também político, mas daqueles como vai havendo poucos. Dos tais que acreditam que a política ainda pode servir para trazer algo de bom ao mundo e não apenas para lhes dar um “tacho”. Militante do Partido Socialista, fazia de tudo um pouco, emprestando a sua voz e prosa a campanhas eleitorais para autárquicas, legislativas e presidenciais. Foi o “animador de serviço” nos comícios promovidos no Algarve, nas cidades de Faro e Portimão, pela primeira candidatura de Mário Soares à presidência da República, em que numa disputíssima segunda volta o candidato socialista acabaria por bater Freitas do Amaral, por uma “unha negra”.
Ele próprio, exerceu também cargos políticos pelo seu partido de eleição, nomeadamente presidente da Assembleia Municipal de Olhão, entre 1989 e 1997. Praticante do que pregava, tratava de dialogar e procurar consensos entre os vários quadrantes políticos.
Um promotor incansável do seu concelho
Comunicador por excelência, Humberto Fernandes distingui-se também, como não poderia deixar de ser, na promoção do que de melhor existe no seu concelho natal: Olhão.
Até 1993 participou ativamente no já célebre Festival de Marisco, hoje património da cidade de Olhão, presente em praticamente todo o material promocional do concelho.
Teatro e poesia: paixões antigas
Todos os talentos já apresentados neste apontamento chegam e sobram para o comum dos mortais, mas isto há daqueles génios para quem há sempre tempo e alma para mais uma paixão. E Humberto Fernandes tinha mais duas: o teatro e a poesia. Antigas, íntimas e desnvolvidas com a paixão que o génio olhanense punha em tudo o que fazia.
Ainda aluno do liceu, ingressou no Teatro Lethes, onde se manteve até ingressar na Faculdade de Direito de Lisboa, curso que não viria a concluir, certamente por ser mais forte o apelo das letras do que o apelo das leis.
Já como professor, voltou a abraçar a velha paixão, colocando-a ao serviço dos alunos. Os dois anos de passagem pela Escola Secundária de Vila Real de Santo António chegaram-lhe para criar a Oficina de Teatro “O Guadiatro”.
De regresso à Escola Secundária Dr. Francisco Fernandes Lopes, em Olhão, passou a colaborar com o projeto “Teatro da Vida”, criado pelas colegas Célia Gonçalves e Guida Pinto. Desenvolveu ainda projetos de teatro noutas escolas, nomeadamente a Escola Básica 2, 3 Dr. Joaquim Magalhães, em Faro, e a Escola Básica 2, 3 Carlos da Maia, em Olhão.
Mais intimista, nascida do seu dom natural da escrita e do seu gosto de brincar com as palavras, foi certamente a paixão pela poesia. Para além de escrever os seus próprios poemas, os seus dotes naturais de orador e comunicador faziam dele um excelente declamador das poesias de outros. Eugénio de Andrade, António Gedeão, Ary dos Santos e Leonel Neves, entre outros, eram alguns dos poetas aos quais mais gostava de emprestar a voz.
Muito mais haveria a dizer sobre alguém que partiu cedo de mais. A vida de Humberto Fernandes merecia claramente um livro, que não cabe nas páginas de um jornal. Cabem certamente os testemunhos dos amigos e esta grosseira biografia. Há muito se diz que “morrem cedo, aqueles que os deuses amam”. Será verdade, mas é mais uma injustiça, como tantas nos tempos que correm.
O seu lado mais privado e familiar
“Na qualidade de companheira dos últimos 25 anos de vida de Humberto Fernandes e volvidos 20 anos após a sua morte e também porque o seu lado mais público foi muito falado e escrito à época, nas vertentes humanista, profissionais, político sindicais e sociais, urge hoje escrever sobre o seu lado mais privado e familiar.
O caráter humanista era, diria eu, um traço da sua personalidade que se estendia para a esfera mais privada, sempre atento às necessidades do outro, sempre pronto a ajudar, a aconselhar. Era de uma enorme sensibilidade no trato com os que lhe eram mais próximos. Tinha um conceito de família muito particular, muito agregador, procurando sempre contribuir para o bem-estar de todos.
Em suma, era sempre muito presente e intenso nas relações, aliás à semelhança daquilo que acontecia nas suas relações públicas.
Para atestar este traço de personalidade, ainda hoje quando a família se reúne ele continua a ser uma figura presente e central nestas reuniões.
O filho que ele amava acima de tudo e tinha apenas 7 anos quando o pai morreu, poderia ter uma ideia vaga do pai, mas não, ele recorda e relata as mais variadas vivências que teve com o pai, desde as brincadeiras despreocupadas, as músicas que ouvia com o pai, os filmes que viam, as receitas culinárias que preparavam conjuntamente.
A sua vida foi curta, mas vivida com muita intensidade, e tenho a certeza que não passou indiferente a ninguém que se cruzou com ele, gostasse mais ou menos da sua personalidade”.
Juliana Feitor
Leia também: Esta é uma das melhores praias do Algarve para se ver o pôr do sol