Não é suposto que por aqui tenha andado, mas não é de todo improvável que isso pudesse ter acontecido. Afinal, Ossónoba fazia parte integrante do império romano e Milreu era uma estância residencial de um abastado súbdito de Roma.
Adriano, imperador romano, nasceu em Itálica, na Hispânia, e foi no seu governo, entre os anos de 117 e 138 d.C., que conheceu um dos períodos de maior esplendor. Ficava a escassas duas léguas de Hispalis (Sevilha), e o seu anfiteatro, com capacidade para 25 mil espectadores, foi um dos três maiores do império romano.
Marguerite Yourcenar, que lhe seguiu os passos por onde constasse que havia sinais dele, esteve em Faro, em fevereiro de 1958, mas não encontrou por aqui memórias de Adriano. Por essa altura, o seu busto e os de outras duas proeminentes figuras de Roma – os imperadores Galieno e Agripina -, estavam ainda soterrados nas ruinas de Milreu e só viriam a ser encontrados oito anos mais tarde.
É verdade que o achado, por si só, nada esclarece quanto a uma eventual passagem de Adriano por aqui, embora Ossónoba, seguindo o itinerário de Antonino – um verdadeiro mapa de estradas do império romano –, não ficasse a mais de dois dias de viagem de Itálica. E por esse tempo, a futura capital algarvia já se havia tornado num centro económico, comercial e político de grande relevo no império romano do sudoeste peninsular.
Daqui partia a estrada para Itálica, e a norte estava ligada a Emérita Augusta (Mérida) por um corredor rodoviário – ainda hoje existente -, passando por Beja (Pax Julia) e Évora (Ébora), com uma derivação a ocidente, para Lisboa (Olissipo). Além disso, a cidade integrava-se no eixo marítimo que começava em Cádiz e contornava o Cabo de S. Vicente, passando pela foz do Guadiana, Tavira, foz do Arade e Lagos.
O porto de Ossónoba, como os de outras cidades marítimas, era a plataforma onde se carregavam e escoavam os produtos agrícolas, sobretudo frutos secos, vinho e azeite, das quintas nos arredores de Faro, mais o pescado, o sal, as conservas e os minérios. Foi uma época de grande prosperidade e de afirmação estratégica no contexto regional, de tal modo que chegou a cunhar moeda própria. Mais tarde, na era da cristianização do império, viria a ganhar o estatuto de diocese, tendo D. Vicente como seu primeiro bispo.
Pelas condições económicas ligadas ao mar e à agricultura de que dispunha, o Algarve desse tempo tornara-se um centro de atração escolhido pelas elites e famílias romanas abastadas que aqui se estabeleceram. E por toda a zona de costa, ou perto dela, ergueram-se novas cidades, rodeadas, quase sempre, de quintas agrícolas com as suas mansões, como foram os casos de Balsa (Tavira), Besuris (Castro Marim), Cerro da Vila (Vilamoura), Abicada, na Mexilhoeira Grande, e Milreu.
Tratando-se de um palacete de um patrício ou homem rico de Roma, a villa de Milreu alcançava-se subindo o rio Seco – considerando que fosse navegável nesse tempo – a partir de Ossónoba ou pela estrada que corre por perto em direção a Vale de Joios, em S. Brás de Alportel, onde se podem observar restos dessa mesma via romana. Durante muito tempo teve-se como provável que Milreu pudesse ter sido a antiga Ossónoba romana. Uma tese repetida até 1952, ano em que Abel Viana faria prova definitiva de que se tratava de duas povoações distintas.
Situada a oito quilómetros da capital, Milreu – que teve ocupação permanente do século I ao século XI – ergue-se em patamares sobre uma encosta, paredes meias com a atual aldeia de Estoi, um pouco mais a subir. Era cortada por uma estrada que ainda ali está parcialmente lajeada. De um lado, à direita de quem sobe, eleva-se o templo, que numa primeira fase da romanização era destinado ao culto pagão da água e, mais tarde, transformado num santuário cristão. Já no período islâmico foi usado como cemitério. Do ponto de vista monumental é a estrutura que mais se salienta na paisagem, e parte significativa das suas paredes ainda se conserva de pé e em bom estado de conservação, tendo em conta os quase dois mil anos, entretanto, decorridos. O levantamento e os estudos de interpretação realizados primeiro por Estácio da Veiga em 1878, e posteriormente por outros especialistas, referem que o templo teria sido coberto por uma abóboda, agora inexistente, decorada com tesselas de ouro.
Do lado esquerdo da mesma estradinha que divide o conjunto arqueológico, estava edificada a villa propriamente dita. De ambos os lados da escadaria de entrada, existem dois tanques semicirculares que, outrora, terão sido cobertos por uma cúpula em meia-esfera. Passando para o interior da residência, seguindo as indicações do IPPAR, fica o que resta daquilo que seria a praça central, com um tanque retangular ao meio, rodeada de galerias supostamente cobertas, como atestam as colunas em mármore cinzento que foram sobrevivendo ao tempo e ao vandalismo. Estes corredores davam para um conjunto de divisões e quartos destinados aos residentes e convidados. A ocidente, no patamar contíguo à praça, ficava uma grande sala de refeições com uma estrutura em pedras dispostas em U, sobre as quais assentavam as clinai, que mais não eram senão aqueles cadeirões ou leitos inclinados onde, à maneira romana, se tomavam as refeições.
A Villa de Milreu é um exemplo construído à semelhança dos modelos das casas rústicas existentes à época da romanização um pouco por todo o império, e permite perceber a riqueza e o nível social e cultural elevados das famílias que ali habitaram. Exemplo disso é a decoração dos pavimentos em mosaicos pintados com motivos predominantemente marinhos, faixas de ondulantes, revestimentos a mármore, estuques pintados e peças de escultura decorativas, como os bustos dos imperadores e de outras figuras notáveis da sociedade romana.
Os proprietários da domus, como bons romanos que eram, não dispensavam as termas. E havia pelo menos duas: a maior de águas aquecidas, e uma mais pequena de água fria chamada refrigerium, cujos degraus e paredes se mostram ainda revestidos a mosaicos decorados com desenhos alusivos ao mar. O aquecimento, que abrangia outras áreas residenciais, provinha de uma fornalha que aquecia igualmente as salas de massagens através de cavidades por onde circulava o ar quente. Nada ficava ao acaso, nem tão pouco o sistema de esgotos e o abastecimento de água, que era feito por armazenamento em cisternas alimentadas a partir de fontes localizadas em Estoi e que corriam pela encosta abaixo em direção à villa e ao rio.
Na zona de uma casa rural que ali foi edificada em séculos mais recentes, podem ser vistas as estruturas de uma adega de vinho com as suas cubas para pisa e fermentação das uvas. Mais abaixo, no lagar de azeite, havia seis prensas ligadas por um sistema de tubos em chumbo a 36 talhas onde se recolhia o líquido, que depois era guardado em dois compartimentos de uma cave com três metros de profundidade para o manter em lugar seco e fresco. As talhas, em muito bom estado, feitas ao que parece em mármore, encontram-se tapadas para evitar mutilações irreparáveis.
Como se constata, Milreu – que acumula diferentes fases de construção ao longo dos tempos – era um complexo residencial de luxo com uma unidade de produção agrícola e de armazenamento de produtos para abastecimento próprio, e para exportação através do porto de Osssónoba. Entre a réplica e o original, faz lembrar Villa Adriana, desenhada pelo próprio imperador para sua residência, junto à cidade italiana de Tivoli com outra dimensão e riqueza.
E se Adriano não chegou a vir por aqui, sendo embora um imperador viajante, chegaram-lhe certamente notícias do esplendor do império para estes lados. Um brilho de riqueza e poder que se prolongou até ao fim do império romano, a que se lhe seguiu, por cinco séculos, o período de dominação islâmica.
Um e outro – árabe e romano -, são dois lados da mesma moeda, com um valor facial em termos culturais, que não desvalorizou com as guerras nem com o tempo.
Fontes: “Milreu – Ruínas”, IPPAR-Roteiros da Arqueologia Portuguesa; “O Templo Romano de Milreu”, João Pedro Bernardes e J. Encarnação, in Anais do Município de Faro, 2018; outras.