Luz Oculta, de Joanne Harris, foi agora publicado pelas Edições Asa, com tradução de Ana Saldanha.
Esta autora anglofrancesa tem vários livros, que se distribuem em diferentes séries. As novelas francesas, que se seguiram ao aclamado Chocolate; os thrillers psicológicos, maioritariamente situados no Colégio de St. Oswald; um par de novelas góticas; alguns livros de contos e ainda outros tantos livros de cozinha. Além disso, a autora tem ainda várias obras em torno da mitologia nórdica, com vários volumes em torno das runas e de Loki.
Luz Oculta situa-se no limiar entre o thriller psicológico, com ligeiras referências ao Colégio de St. Oswald, e é um romance profundamente original, que nos leva numa emaranhada teia de implicações sociais e éticas. Conta-nos a história de como Bernie Moon era especial, uma criança que fica fascinada com um truque de magia, um jogo de ilusão que não esquece para o resto da sua vida. Aos dezanove anos, Bernadette acumulava sonhos, alegrias e ambições. Mas tudo se desvanece quando se vê grávida. Aos 48 anos, continua casada com o seu primeiro namorado, o pai do seu filho que agora vive longe e mal lhe fala, e começa a ter afrontamentos de calor e suores intensos, que anunciam a chegada da menopausa. Mas com a menopausa, e em simultâneo com a descoberta do corpo de uma jovem mãe, assassinada num jardim perto de sua casa, Bernie redescobre o seu talento antigo, que há muito decidira suprimir e esquecer. Bernie recupera um dom que julgava ter perdido quando o período lhe chegou, e de que teve outrora apenas ligeiros episódios, aparentemente desconexos, mas suficientemente estranhos para lhe valer a desconfiança e hostilidade dos colegas e amigos mais próximos que a olham com cautela e até desdém.
Bernie Moon consegue entrar na mente das pessoas, vendo os seus segredos e anseios como quem espreita por uma casa de portas abertas e janelas escancaradas. Mas nesta história que é uma irónica reescrita em reverso da história de Carrie, de Stephen King, Bernie consegue inclusivamente puxar a toalha da mesa, sem quebrar nada (ou quase), e reverter o interior das pessoas, como quem desloca um espelho e o vira ao contrário, deslocando assim os reflexos e os jogos de luz. Primeiro ao partilhar uma aula de yoga ou uma sessão de sexo, roubada a outrem com quem esbarra quase acidentalmente na rua, depois ao saborear pela memória de outra mulher o prazer de um bolo comido momentos antes – enquanto Bernie poupa essas calorias, pois durante toda a sua vida, da mãe ao marido, fizeram questão de a lembra constantemente do seu peso. Mais tarde descobre-se capaz de convencer as pessoas a comprarem mais livros na livraria local em que trabalha, assim como as incentiva subliminarmente, por telepatia, a ler géneros diferentes, que possam abrir os seus horizontes.
Gradualmente os seus poderes acentuam-se, conforme Bernie tenteia os seus limites e, por vezes, as consequências são mesmo imprevisíveis. Torna-se assim, ainda que a medo, uma espécie de justiceira para as mulheres ofendidas.
Este romance é ainda uma paródica e inteligente reinvenção de Carrie, de Stephen King, na forma como a narrativa culmina num baile de finalistas – neste caso, num reencontro, 30 anos depois, da turma de finalistas de 1992 -, e na forma como inicia e encerra com sangue a derramar-se… em especial, pelo facto de duas das personagens retomarem o fluxo menstrual subitamente, depois de vários meses sem período.
Luz Oculta, tradução que não faz plena justiça ao título original de Broken Light, remete para este dom como uma oportunidade de brilhar, apesar de todas as implicações éticas que advêm de entrarmos na mente de alguém, levando-as a mudar o seu pensamento. Há além disso uma irónica e divertida associação aos tempos de hoje, numa clara leitura daquilo que são as redes sociais, na forma como nos escancaram a vida alheia, ou o jogo de espelhos que as pessoas decidem projetar, enquanto suprimem os simulacros de uma vida não tão perfeita ou “instagramável”.
Ao longo do romance, há várias referências ao tempo que Bernie dedica a influenciadores das redes sociais, na forma como vivenciam a sua própria menopausa, ao tempo que se dedica a esquecer-se um pouco da sua vida monótona e pouco motivante, trocando o seu quotidiano por instantâneos de outras pessoas que nem conhece, às mensagens e comentários muito pouco reconfortantes conforme as pessoas entram em discussões estéreis e agressivas em que possivelmente nunca participariam numa conversa cara a cara. Um romance que trata assim também a forma enganosa ou transparente como as pessoas se projetam perante o outro:
“Algumas pessoas revelam-se com um olhar de relance. Outras têm segredos ocultos. Algumas pessoas gostam de se projetar como uma coisa, vivendo ao mesmo tempo como outra.” (p. 184)
Um romance divertido, não tão ligeiro, que problematiza de forma irreverente as relações entre homens e mulheres, as questões de género, as novas políticas de cancelamento e de castração do género masculino, a temática do crescimento e do envelhecimento, do poder e da amizade, das convenções sociais e dos desejos subliminares.
Uma nota crítica consiste numa frase que a certa altura podemos ler no romance: “As pessoas são muito mais complexas do que as redes sociais querem levar-nos a crer.” (p. 91) No entanto, nessa mesma página, no início do romance, é premente a sensação de que a autora, ao querer escrever sobre uma série de questões atuais, embrulha tudo num novelo, e acaba por tocar muito ao de leve fatores diversos e distintos de forma muito superficial. Por exemplo, quando Bernie incide o seu terceiro olho dentro da “casa” mental de Woody, onde descobre adereços que eram, na verdade, “memórias e segredos e pornografia e revistas de musculação e equipamento de ginásio e comida saudável e imagens dele mesmo, tudo empilhado ao lado de teorias da conspiração, racismo casual, piadas sexistas e sonhos de aventura de banda desenhada, com uma carga de nostalgia de um passado imaginado em que os homens obtinham o respeito que mereciam e as mulheres e os imigrantes sabiam qual era o seu lugar” (p. 91).
Joanne Harris nasceu no Yorkshire, de mãe francesa e pai inglês. Estudou Línguas Modernas e Medievais em Cambridge e foi professora durante quinze anos. A sua obra está atualmente publicada em quarenta países e foi galardoada com inúmeros prémios literários internacionais. A autora vive com o marido, Kevin, e a filha, Anouchka (o mesmo nome da filha da protagonista de Chocolate), a cerca de vinte quilómetros do sítio onde nasceu.
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