Entre quem se opõe à guerra na Ucrânia, a questão das sanções e dos boicotes à Rússia são mais ou menos consensuais. Mas, e apesar de ser reconhecido que a cultura é um fator de ponte entre culturas, países e pessoas, o mundo assiste a um novo fenómeno pouco comum nos tempos de hoje: obras de compositores [russos] retiradas de alguns programas de recitais em várias salas de concerto.
No mês passado, o mais conhecido maestro russo da atualidade, Valery Gergiev, apoiante de Vladimir Putin, “teve de abandonar postos e compromissos em diversas orquestras internacionais quando recusou demarcar-se expressamente do presidente da Rússia, como lhe exigiram”. Também a soprano Anna Netrebko, proeminente no mundo musical, anunciou que ia suspender as suas atuações e defendeu que “um artista não deve ser obrigado a criticar o seu país”.
O ator Luís Vicente, o escritor José Carlos Barros, o coreógrafo António Laginha, o gestor cultural Jorge Queiroz e o diretor do Teatro das Figuras Gil Silva* aceitaram o desafio e partilham connosco o seu saber e experiência sobre um tema cuja reflexão deve estar na ordem do dia.
P – Justifica-se boicotar artistas russos por causa da guerra na Ucrânia?
António Laginha – Tal como assinala a mensagem emanada da UNESCO (Paris) para o próximo Dia Mundial da Dança (DMD) – 29 de Abril – muitas pessoas, actualmente, lutam na Ucrânia em resposta a uma guerra intolerável e devastadora imposta por um ditador impiedoso, sanguinário e que não tem qualquer respeito por uma nação independente, nem limites para o sofrimento alheio. A Dança, depois de ter sido severamente atingida pela pandemia foi, agora, também ferida por um conflito armado que poderá atingir uma escala inimaginável. Estamos, pois, perante duas verdadeiras tragédias. E o que se aplica à “arte da musa Terpsícore”, pode e deve aplicar-se, ipsis verbis, a todas as outras Artes.
Porém, não se devem confundir os artistas – fazedores de toda e qualquer arte – com os políticos. O que, aliás, é uma combinação que nunca resultou, nomeadamente no nosso País. E exemplos dessa nefasta promiscuidade não têm faltado nos anos mais recentes.
A arte, pela sua intrínseca natureza, deve estar sempre acima de qualquer regime. Já os regimes devem evitar a tentação de se imporem como (bons) mecenas apenas para colher dividendos.
Embora nunca se deva exigir dos artistas que sejam “apolíticos”, a sua arte jamais deve estar refém de decisões políticas e burocráticas que possam cercear a sua criatividade e, muito menos, o seu desejável desenvolvimento intelectual e artístico. Tal é inaceitável e, mesmo, repugnante em qualquer nação e, muito menos, nas ditas civilizadas, livres e democráticas.
Assim sendo, e por maior respeito e admiração que se tenha, por exemplo, por uma grande bailarina ucraniana, como Iana Salenko, não devia passar pela cabeça de alguém minimamente ponderado recusar assistir a um espectáculo da russa Natália Osipova, uma das maiores bailarinas da actualidade. Curiosamente, a primeira apresenta-se regularmente no Ballet Estatal de Berlim e a segunda no Ballet Real de Londres. Onde é adorada. É tido por garantido que o trabalho de ambas vale por si independentemente do local e da companhia em que se apresentam. A sua arte está acima de qualquer suspeita e a sua postura tem sido irrepreensível relativamente a cada um dos lados da (actual) barricada. Não poderei, também, deixar de trazer à colação o exemplo de uma outra conhecida ballerina, a internacional russa Olga Smirnova, que em manifesto repúdio pela escalada de terror e morte imposta pelo presidente da Rússia ao povo irmão, se demitiu recentemente (e com grande impacto mediático) do Ballet Bolchoi, tendo se mudado para Amsterdão, para encabeçar o elenco do Ballet Nacional da Holanda.
Já a situação de um outro russo, Igor Zelenski, antigo primeiro bailarino do Ballet do Teatro Maryinski (de São Peterburgo) e do New York City Ballet (de Nova Iorque) que até há pouco foi director do Ballet da Ópera Estatal da Baviera, em Munique, é diversa. Devido a alegadas ligações (perigosas) com a ditadura russa, optou – não se sabe quão voluntariamente – por um caminho antagónico deixando o seu cargo e rumando a lugar incerto.
Mas é evidente que punir artistas vivos (e censurar até mortos, desaparecidos alguns já há séculos) não pode ser uma postura aceitável só porque, neste momento, eles não se distanciam liminarmente de Putin. A “caça às bruxas” não deve ser aceite e a Inquisição não deve regressar dos confins das trevas. Uma outra coisa é boicotar aqueles que, abertamente, continuam a apoiar um regime autoritário e que tudo arrasta, incluindo artistas e artes. A discriminação pode e até deve ser feita relativamente à postura e a ideias politicas que colidam com a vida e a dignidade dos povos, mas nunca tendo a ver meramente com a localização geográfica do nascimento ou a cor do passaporte de um indivíduo que faz das artes a sua profissão.
Tal como termina a citada mensagem do DMD: o momento é de ações concretas e resultados tangíveis, pois este é um tempo para nos unirmos para avançarmos juntos. Com ponderação, já se vê. E, sobretudo, com justiça e firmeza e muito amor e o maior dos respeitos por todos os verdadeiros, íntegros e coerentes fazedores de Arte que, em qualquer parte do Mundo, muitas vezes lutam um dia, um ano ou toda a vida, para ver o seu trabalho reconhecido e apreciado.
Luís Vicente – As questões que me colocas são interessantes e dariam para a explanação de muita matéria filosófica e prosaica, porquanto apontam para um universo da criação e interpretação artística que não é exactamente o meu mas com o meu está correlacionado. Referes duas pessoas do universo da Música. Ora, eu sou do universo do Teatro, que é aquele que convoca os olhos nossos da alma e da consciência com que olhamos o Mundo e o nosso semelhante – por isso se diz que o Teatro é a mais humana das Artes. À realização teatral, segundo entendo, impõe-se o sentido da Esperança que na Terra ao Homem compete afirmar e revelar, qual Sísifo no momento de descer a montanha, como sugeriu o Albert Camus.
Estou em total, absoluto, incontornável DESACORDO com a Anna Netrebko (intérprete que sinceramente admiro, com um cristal vocal único, reconheço). Mas NÃO! Um artista tem a OBRIGAÇÃO – repito, a OBRIGAÇÃO -, de criticar o seu país sempre que os ditames dele atentam contra a LIBERDADE própria e alheia! É o caso. Ou não?! E aqui rendo a minha homenagem a uma colega – cujo paradeiro tenho vindo a procurar alcançar, até à data sem o conseguir-, Elena Kovalskaya. É russa, diretora do Teatro e Centro Cultural Meyerhold , em Moscovo, um equipamento de Estado. Demitiu-se (e desapareceu) por não aceitar que o seu salário lhe fosse pago por um assassino – Putin. Portanto, como Elena agora, recordo eu uma circunstância passada comigo tinha então quinze anos: foi o meu pai admoestado pela PIDE por ter eu dito a palavra LIBERDADE. NÃO! A Arte e os artistas não estão nem acima nem abaixo das exigências éticas e morais que se colocam ao ser HUMANO em sociedade. O que Putin está a fazer é CRIME. E a Anna Netrebko não tem como o negar, caso queira contornar as manobras de informação impostas por Putin (neste caso arrisca prisão) – e eu sei que ela tem forma de o fazer!
Jorge Queiroz – “Neste mundo, os loucos conduzem os cegos” escreveu William Shakespeare no “King Lear”.
Do passado ficaram-nos obras de valor universal produzidas por criadores que, por convicção, oportunismo, condicionamento psicológico, razões de sobrevivência económica e artística, não se demarcaram, colaboraram ou até apoiaram regimes antidemocráticos e totalitários.
Estreita foi sempre a relação entre o mundo das artes com os poderes, político, financeiro e religioso. O mecenato protegia e pagava aos talentosos, estes elaboravam as obras desejadas pelos regimes e líderes, assim aconteceu desde a Antiguidade à actualidade.
Em Portugal artistas de inquestionável valor colaboraram por razões certamente diversas com o Estado Novo e a ditadura. Ninguém em democracia, por esse passado, foi banido da História da Cultura portuguesa, das bibliotecas, das colecções de arte e das edições actuais, apesar de um regime que conduziu perseguições, exílios, prisões e até eliminações físicas de adversários…
Recordo-me de nos anos 90 conversar com Amália Rodrigues sobre este tema, ouvi o seu lamento sobre as acusações injustas de que seria figura apoiante do regime e outras calúnias, contou que ajudava famílias de presos políticos, o que é hoje do conhecimento publico.
A oposição democrática portuguesa até 1974 soube distinguir o regime político da generalidade da população que sofria as consequências das guerras coloniais, da emigração e pobreza.
Ao adoptar-se como critério de apresentação a nacionalidade ou as convicções políticas dos autores, supostas ou reais, pouco restará exibível em matéria de “pureza democrática”.
Boicotar obras e autores, nomeadamente clássicas, por decisões políticas tomadas por outros é absurdo, uma posição censória que fragiliza o campo democrático e abre precedentes.
É obviamente um erro impedir a apresentação de obras e artistas por razões de nacionalidade, sejam russos ou de outras origens.
José Carlos Barros – Não, não se justifica boicotar artistas russos por causa do regime ditatorial de Putin ter decidido invadir a Ucrânia.
Gil Silva – Gostaria, antes de responder, de me manifestar absolutamente contra, a invasão de um país soberano, Ucrânia, tendo em conta os motivos invocados. A resposta a esta pergunta, obviamente, não é consensual, daí a pertinência da mesma. Na minha opinião qualquer tipo de censura é condenável, ao censurarmos estamos, no fundo, a utilizar os mesmos recursos que muitos despostas e autocratas utilizam. Para além disso, nem todo o artista de nacionalidade russa é a favor da guerra que está acontecer na Ucrânia e poderemos estar a penalizar duplamente o artista e a sua obra. Estas considerações são sobre artistas e obras contemporâneos, porque censurar artistas mortos, ainda menos se justifica.
P – E em relação a artistas tidos como apoiantes do regime de Putin desde há muito?
António Laginha – A expressão “há muito”, por vezes, pode ser quase tão relativa como “há pouco”. E é, provavelmente, entre essas duas balizas temporais que devemos enquadrar as “simpatias” de artistas que continuaram “amigos” do regime russo ou apoiantes do seu presidente, após Putin ter espalhado o terror e a morte dentro e fora das fronteiras da pátria de Tchaikovski, Tolstoi, Chagall, Chaliapine e Nureyev. Mais acentuadamente desde 2014, data da mortífera e abusiva invasão da Crimeia.
É certo que as ambições imperialistas de Putin – antigo patrão do FSB e do KGB que há mais de duas décadas dirige com mão de ferro os destinos da Rússia – têm fomentado o aparecimento de muitos opositores, designadamente, artistas a manifestarem-se contra toda a espécie de arbitrariedades perpetradas pelo Kremlin. O exemplo mais divulgado (na área artística) pode, mesmo, ser o audaz grupo punk rock feminista moscovita Pussy Riot.
Mas o mal-estar na comunidade artística russa, decorrente de políticas desumanas, autoritárias e expansionistas, há muito que é bem visível, transbordando, mesmo, para fora das fronteiras do imenso país. Muitos ainda estão lembrados do impensável e horrendo crime perpetrado por um bailarino estrela do Bolchoi (grande) Ballet que mandou atirar ácido para o rosto do director artístico da famosa companhia. O delito que chocou o mundo do bailado, e não só, foi bem revelador de tudo o que está podre na comunidade artística russa na era Putin, a qual já leva mais de duas décadas.
Assim, se o actual regime russo protege artistas que se “encostaram” – e em todos os países há os ditos “artistas de regime”, mais ou menos óbvios – ou apoiam abertamente Putin, e a sua consciência não lhes pesa, o caminho a seguir deverá ser o regresso ao seu país natal. Não se sujeitando, assim, à humilhação de verem as suas carreiras interrompidas em países que politicamente não suportam a ideia de estar a sofrer as consequências de uma guerra medonha – na maior das solidariedades com o país mártir – em que a Arte já nem consegue sequer funcionar como um pequeno lenitivo.
Luís Vicente – Fica fora do meu alcance conceber como é que um Artista pode ser apoiante de um tipo que foi formado no seu pensamento e formatado na sua estrutura mental por uma polícia política,- no caso a KGB, mas também podia ser a CIA ou a Mossad ou qualquer outra.
Pode confiar-se na palavra de uma criatura destas? Não, de todo! Espanta-me como é que o Ocidente se deixou enredar por tal cascavel. Espanta-me como é que esta criatura fala pela Rússia. Enfim… espelha bem a natureza daquele regime.
Jorge Queiroz – No mundo actual existem demasiados regimes e políticos pouco recomendáveis.
Está implícito na resposta anterior como é difícil definir “apoiante”, se existe verdade da adjectivação bem como as motivações de cada criador. Na realidade o que move as guerras são recursos energéticos e outros, geoestratégias e a segurança dos regimes. Deverão ser os decisores políticos responsabilizados e criminalizados pelas guerras, não os artistas e outros cidadãos sem poder de decisão.
Se os canais diplomáticos se devem manter abertos, também o da cultura o deverá estar, como um dos melhores meios de diálogo, aproximação e reencontro.
José Carlos Barros – Teria dificuldade em compreender a promoção de actividades, culturais ou outras, de artistas ou outros cidadãos, russos ou de outra nacionalidade, que apoiem ou defendam a actuação criminosa e ditatorial de Putin.
Gil Silva – É importante distinguir o artista da sua obra. E mais importante ainda é apreciar a obra e não o artista. Se nós tivéssemos de boicotar obras de artistas cuja a sua conduta ou a sua opinião não se coaduna com a norma e/ou moral dos nossos dias, haveria muitas obras de arte geniais e seminais que teriam de ser proibidas.
P – Qual tem sido a postura em Portugal e particularmente no Algarve?
António Laginha – Não creio que Portugal tenha sido particularmente incisivo (e muito menos uma região meridional como o Algarve) relativamente a uma exclusão liminar de artistas russos dos seus palcos, na sequência do actual conflito bélico russo-ucraniano.
Tal não creio ter sido noticiado. Também não ouvi sublinhar um oportuno (e positivo) acolhimento de artistas ucranianos em fuga. Apenas nos chegaram notícias que alguns (do sexo masculino) pereceram devido às balas e mísseis russos.
Até porque, felizmente, os Portugueses parece terem andado muito mais ocupados com acções solidárias para com as mulheres e crianças necessitadas fugidas da Ucrânia, do que, propriamente, a punir russos pró-imperialismo.
E isso prova que Portugal, com muitas falhas para com os seus próprios artistas, é um país atento, solidário e respeitador das leis internacionais e da vida humana, tendo, no passado – e admito tal por experiência própria – acolhido igualmente russos e ucranianos que, sobretudo, no Algarve sempre conviveram com uma certa harmonia, debaixo do nosso sol quente e hospitaleiro.
Do ponto de vista artístico, a presença de elementos de ambos os países é tão insipiente – resume-se, basicamente, a uma ou outra companhia de bailado clássico itinerante que em épocas festivas traz um Quebra-Nozes ou uma Copélia aos poucos teatros que têm condições para acolher esse tipo de bailados, ou a um maestro ou músico que colabore com a única orquestra de linha académico-clássica existente no sul do país – que o seu peso não afecta a nossa balança artística.
Nada que se possa comparar com a situação, por exemplo, da Região Autónoma da Madeira em que, há vários anos, uma comunidade muito expressiva de “artistas de Leste” passou a residir no Funchal, aumentando o nível artístico, técnico e didáctico do ensino da música naquela cidade. Onde, com o mesmo fim, há exactamente 75 anos se fixou a pianista e pedagoga louletana Maria Campina, uma das fundadoras da Academia de Música da Madeira – hoje, Escola Profissional de Artes – e, mais tarde, juntamente com o seu marido, do Conservatório Regional do Algarve, em 1973.
Com ou sem artistas russos e mais ou menos ucranianos em solo lusitano, as nossas artes performativas – e é basicamente disso que estamos a falar – curiosamente, cada vez parecem depender menos da presença de artistas de Leste, sobretudo a nível interpretativo. Até porque, desde a segunda metade do século XX, os (bons) ventos têm soprado na Europa muito mais dos lados do Ocidente do que do Oriente. E ela própria tem se mostrado senão um bom contraponto aos modelos que transbordaram do Estados Unidos da América para o “velho continente”, mas, sobretudo, uma alternativa aos modelos mais academizantes ainda hoje, normalmente, vindos do leste europeu.
Luís Vicente – Não sei, não faço ideia. Nós, na ACTA, temos feito e vamos continuar a fazer o que está ao nosso alcance em ações de solidariedade com o povo ucraniano e os seus artistas.
Jorge Queiroz – O essencial é que em todas as regiões portuguesas, também no Algarve, se realizam acções de solidariedade com o povo ucraniano, revelando que somos um povo civicamente adulto.
José Carlos Barros – Não tenho conhecimento de situações de boicote a artistas russos. Pelo sim pelo não, e vindo assim a talho de foice (salvo seja), aproveito para recomendar o livro de um autor nascido em Moscovo: «Chuva na Madrugada», de Constantino Paustovski (colectânea de contos editada em 1973 pela Inova na fabulosa Colecção Duas Horas de Leitura, com tradução de Egito Gonçalves, e fácil de adquirir, a partir de 5 euros, em alfarrabistas ou lojas virtuais). «Chuva na Madrugada» é um delicioso exercício literário sobre a melancolia e sobre o que fica (ou seja: o que nos pertence) depois de perdermos tudo.
Gil Silva – Não conhecendo a realidade nacional e regional, quero acreditar que estas manifestações não acontecem no nosso país e espero, sinceramente, que nunca venham a acontecer.
*NOTA: As respostas do diretor do Teatro das Figuras Gil Silva não foram publicadas na nossa edição papel por terem chegada depois do fecho da edição.