24 de fevereiro de 2022 será para sempre recordada como uma data triste na história do mundo e da civilização humana, pois marca o início da invasão da Ucrânia pela Rússia.
Logo dois dias depois foi divulgada a destruição do Museu Ivankiv, situado na região metropolitana de Kiev, tendo sido destruídas 25 obras de uma das principais artistas ucranianas, Maria Prymachenko. As suas obras, exuberantes nas cores e formas, retratavam a história e o quotidiano do país e do folclore, em pinturas, desenhos, cerâmicas e bordados. Era reconhecida internacionalmente, tendo o seu talento cativado Picasso e tendo a UNESCO dedicado à artista o ano de 2009. Entretanto, os bombardeamentos russos já destruíram, total ou parcialmente, outros locais de elevada importância cultural, como o Museu de Arte em Kharkiv, com mais de 25.000 obras de arte. Ocorreram também já bombardeamentos próximos do memorial do Holocausto Babi Yar, em Kiev, local onde, em 1941, mais de 34 mil judeus foram fuzilados pelos nazistas em apenas dois dias. Numa entrevista recente, Audrey Azoulay, Diretora-Geral da UNESCO, referia que “temos que salvaguardar a herança cultural da Ucrânia como testemunho do passado, mas também como catalisador da paz e da coesão para o futuro que a comunidade internacional tem o dever de proteger e preservar”.
Efetivamente, o património cultural material do mundo é a nossa herança comum, marcando a identidade e constituindo uma inspiração para toda a humanidade, tendo o poder de nos unir e de promover a paz. Infelizmente, as guerras procuram apagar a identidade, a consciência coletiva e a memória cultural de um povo através da destruição de obras de arte.
Procurando evitar que isso aconteça na Ucrânia, os funcionários do Museu Nacional Andrey Sheptytsky, o maior museu de arte deste país, localizado em Lviv, próximo da fronteira com a Polónia, embrulharam e retiraram já obras deste museu, para protegê-las.
Não sabemos por quanto mais tempo se irá prolongar esta guerra, à data em que escrevo este artigo (11 de março; curiosamente, faz 16 anos que ocorreram os atentados terroristas de Atocha, em Madrid), mas esperemos que a mesma termine quanto antes, evitando mais mortes, feridos, memórias de sofrimento e rastos de destruição.
Naquele que é considerado o mais antigo tratado militar do mundo, “A Arte da Guerra”, escrito no século IV aC, pelo chinês Sun Tzu, é referido que a guerra pode ser o caminho para a sobrevivência ou para a ruína de um povo. Ao longo dos séculos, a história tem demonstrado que a ruína é o denominador comum de qualquer guerra, com destruição de marcos culturais, artísticos e civilizacionais da Humanidade.
No século passado tivemos duas guerras mundiais, a primeira entre 1914 e 1918 e a segunda entre 1939 e 1945. Nesta última foi imensa a destruição, em particular no plano de obras de arte. Ainda jovem, Hitler havia tentado ser um pintor reconhecido, mas foi rejeitado na Academia de Belas-Artes de Viena, em 1907. Trinta anos depois, já como líder da Alemanha Nazista, ordenou a maior ação contra a arte, anunciando a exposição “Arte Degenerada”, em que incluiu artistas como Picasso, Braque, Matisse, Grosz e Ernst, numa ofensiva contra pinturas, esculturas, livros, gravuras e desenhos considerados “impuros”, pois não se enquadravam no ideal de beleza clássico e naturalista.
Após a segunda guerra mundial, em 1954, criou-se na Convenção de Haia o “Escudo Azul”, procurando a proteção de bens culturais em situações de guerra. No artigo 53º da Convenção de Haia para a Proteção da Propriedade Cultural no Caso de Conflito Armado é explicitado que são proibidos “quaisquer atos de hostilidade dirigidos contra monumentos históricos, obras de arte ou locais de culto que constituam património cultural ou espiritual dos povos”, sob pena de serem considerados crimes de guerra. Infelizmente, em diversas guerras, localizadas em diferentes partes do planeta, tem sido evocada a transgressão desta regra, traduzindo a destruição da pedra, da tela, do mármore, do bronze, mas sobretudo uma destruição da palavra, da memória coletiva na forma de arquivos históricos e de manuscritos.
Há quem diga que sempre houve violência ou guerras na história da humanidade, pelo poder, pela conquista de espaço, pelo desejo de posse, mas o problema adicional é que os meios usados são cada vez mais mortíferos, atingindo muitos inocentes. Esta é uma questão central quando pensamos o futuro da humanidade. Tal como as questões ambientais, as questões ligadas à paz, em particular, são fundamentais para podermos pensar na vida no nosso planeta a médio/longo prazo.
A arte visual pode ajudar a parar no tempo e a refletir, de forma a que não se repitam no futuro os erros do passado.
Considero que, para além de contribuir para preservar o património cultural, a identidade e a memória coletiva, a arte pode inserir-se num movimento de “educação para a paz”, nesta sociedade em que é cada vez mais importante educar para princípios éticos universais e para valores humanistas, como sejam a honestidade e o respeito pelos outros.
* Professor Catedrático da Universidade do Algarve;
Pós-doutorado em Artes Visuais;
http://saul2017.wixsite.com/artes