Era seguramente um dos melhores e mais independentes jornalistas de Angola. Quando conversávamos, percebia-se de imediato que sabia mais, muito mais, do que se passava em Luanda do que aquilo que escrevia semanalmente no Expresso. Compreende-se porquê. Por um lado, o regime angolano nunca rimou com a liberdade, particularmente com a liberdade de informação. Foi assim com Agostinho Neto, com José Eduardo dos Santos e, de forma um pouco mais mitigada, com João Lourenço. O próprio Gustavo sentiu na pele a mão pesadíssima do regime, ao ter sido condenado de forma incrível, em janeiro de 2000, a um ano de prisão (com pena suspensa). E no seu dia-a-dia de jornalista, deparou inúmeras vezes com dificuldades, obstáculos, até ameaças, umas veladas, outras nem tanto.
Por outro lado, e tal como manda o melhor jornalismo, era zeloso na confirmação da informação que obtinha, o que, se não é fácil mesmo em sociedades abertas e democráticas, ainda é mais difícil, por vezes mesmo impossível, em regimes autocráticos e que desprezam os direitos dos cidadãos e dos jornalistas. Por isso, sempre que eu ou qualquer outro jornalista procurávamos informação sobre Angola, a porta do Gustavo era sempre a primeira a que batíamos. Até porque em termos profissionais era de uma inexcedível generosidade, sempre disposto a colaborar, na sua proverbial discrição.
Pertencentes à mesma geração, começámos a escrever no Expresso no mesmo ano: 1989. Fizemos alguns trabalhos em conjunto. Não foram muitos, porque também não foram muitos os trabalhos que fiz sobre Angola e em Angola. Com efeito, durante muitos anos, talvez décadas, o Expresso, ou pelo menos alguns dos seus jornalistas, não foram autorizados a entrar em Angola, incluídos numa listagem de personae non gratae. E é sabido que há reportagens que só se fazem no local – ou é preferível nem as fazer. Por vezes, o Gustavo pedia para não assinar os trabalhos que fazíamos em conjunto, pedido que não necessitava de justificar, tão óbvias eram as razões: tinham a ver com a salvaguarda das condições mínimas para poder continuar a exercer a profissão que amava e que exerceu brilhante e corajosamente durante mais de 40 anos.
O PROJETO DE UMA BIOGRAFIA DE LOPO DO NASCIMENTO
Curiosamente, foi depois de me ter reformado que as nossas relações pessoais mais se estreitaram. Motivo: o projeto que ele há muito acalentava (e que não chegou a concretizar) de escrever a biografia de Lopo do Nascimento, uma das figuras políticas cimeiras do MPLA e de Angola e de quem o Gustavo era muito próximo.
Nessa altura, eu já concluíra a biografia do Presidente Jorge Sampaio e o Gustavo quis saber como se fazia uma “coisa” daquelas. Em 2019, numa das suas vindas regulares a Lisboa, ditadas por razões de saúde, conversámos longamente num restaurante perto da Fundação Gulbenkian. No seu jeito sempre tímido e delicado, bombardeou-me com perguntas sobre o modo como eu conduzira a minha investigação. Pediu-me ajuda no acesso aos arquivos portugueses relacionados com o Estado Novo. Espantou-se com a facilidade com que qualquer investigador tem acesso a esses arquivos. De permeio, expôs-me as suas iniciativas em torno de uma preocupação comum: a salvaguarda do espólio do investigador francês René Pélissier. Inevitável, conversámos sobre a sua saúde, motivo principal da sua vinda a Lisboa. Com um sério problema nos rins, a hemodiálise tornara-se obrigatória, tendo-a iniciado assim que regressou a Luanda. E não descartava a hipótese de um transplante, que, na altura, admitia poder fazer ou nos EUA ou na China.
A ÚLTIMA VINDA A LISBOA COM O FILHO TIAGO
Voltou a Lisboa em Junho último. O problema dos rins agravara-se, um transplante parecia ser absolutamente inevitável. À falta de dadores compatíveis, o filho Tiago dispusera-se a ceder ao pai um rim. O Gustavo começou por rejeitar um tal cenário, para si simplesmente impensável. O filho, porém, foi de uma insistência inabalável. Vieram, ambos, a Lisboa, para se submeterem no sistema de saúde português aos inevitáveis exames para uma intervenção que continua a ser de alto risco. Fui acompanhando pelo telefone esta sua última e longa passagem por Lisboa. Apesar do estado relativamente desesperado da sua saúde, a principal preocupação do Gustavo era o filho Tiago, que iniciara em Luanda uma carreira de humorista, como fundador de uma produtora de conteúdos de entretenimento. Não descansou enquanto não conseguiu que o filho tivesse “um papo” com o Ricardo Araújo Pereira, que era (e é) uma espécie de ídolo e inspirador.
A vinda a Lisboa acabaria por ser dececionante, na medida em que inviabilizou o transplante do rim do filho, por incompatível. O mesmo sucedera anteriormente com outros familiares, que também se haviam disposto a doar um rim. Casos, entre outros, do também jornalista Luís Costa, a viver nos EUA e um dos sete irmãos de Gustavo, e o filho mais velho, Sílvio, mas o facto de ambos serem hipertensos inviabilizou o transplante.
Já em Luanda, ao fim de quatro anos veio finalmente a tão desejada notícia: fora encontrado um dador compatível no Brasil. O transplante seria possível já a partir da próxima semana, num hospital de São Paulo. Esta notícia tornou dispensáveis os exames a que o terceiro e mais novo dos filhos, Joacyr, também se disponibilizou, a realizar em Lisboa.
À beira de novas eleições gerais em Angola, que se realizam no próximo dia 24, o Gustavo foi infetado pela Covid 19. Sendo um doente de altíssimo risco, foi internado num hospital, para efeitos preventivos. Chegou a ter alta hospitalar prevista para esta quarta-feira, 17, que só não se efetivou por continuar a testar positivo à Covid. Nesse dia, durante uma das habituais sessões de hemodiálise, sofreu um gravíssimo Acidente Vascular Cerebral. Sobreviveu pouco mais de 24 horas.
O funeral de Gustavo Costa, de 63 anos, realiza-se este domingo em Luanda, para o cemitério de Benfica.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL