
Paulo Serra é doutorado em Literatura na Universidade do Algarve e investigador do CLEPUL
Um dos grandes lançamentos de início de ano da Dom Quixote, este livro foi nomeado para o Prémio Internacional Man Booker 2017, considerado Livro do Ano da revista Economist, vencedor do Prémio da Cultura Flamenga para a Literatura, entre outros, e foi ainda finalista de vários prémios como o Strega Europeo ou o Prémio de História (Davisfond).
Stefan Hertmans nasceu em Ghent, Bélgica, em 1951, e é um dos principais autores flamengos contemporâneos, com romances, contos, ensaios, teatro e poesia, traduzido em várias línguas e vencedor dos prémios mais importantes da literatura flamenga.
Na linha de Sebald, à semelhança do que agora sucede com diversos autores portugueses e internacionais, o autor parte da realidade para deambular pela ficção, pela História, pela biografia, de modo a recuperar a memória de Urbain Martien, um soldado flamengo que sobreviveu à Primeira Guerra Mundial, nascido em 1891 e morreu em 1981, com 90 anos, cheios de vida e de dor:
«Abrem-se nele frequentemente velhas feridas: como a controvérsia em torno do regresso ao país e posterior abdicação do rei Leopoldo, em 1951, e mais tarde, já nos anos sessenta, quando segue diariamente os noticiários na televisão. (…) Fica sempre com a impressão de que querem assassinar mais uma vez o falecido pai, e que até destruiriam os murais dele, se tivessem oportunidade; é um sacrilégio, nem mais nem menos. Pela segunda vez perde as estribeiras, começa a delirar e é de novo internado, recebendo mais uma vez electrochoques.» (p. 83)

Tendo atravessado o século XX, deixou ao neto, o autor, dois cadernos onde conta a sua vida desde a infância, pouco antes da sua morte. Esses cadernos são a chave para o próprio autor deixar aqui um balanço da sua própria vida e se reencontrar, relembrando diversos momentos da sua própria infância, em que o avô ainda era vivo, que ganham novo significado quando perspectivados a partir das memórias do avô e que o autor adiou desvendar por mais de 30 anos.
«Os lugares não são apenas espaço. São igualmente tempo. Desde que trago comigo as recordações do meu avô que olho para a cidade de uma maneira diferente.» (p. 74)
Não deixa de haver um claro paralelismo entre a terebintina que o avó usava nos seus quadros e a pena (ou caneta ou computador, a metáfora estende-se) que Stefan Hertmans toma de modo a reconstituir por palavras suas, ainda que nos mostre diversas passagens em que parece citar os cadernos que herdou do avô, a vida desse homem que lhe inspira compaixão e nostalgia.

Poupamo-nos aos encómios na prosa pois o que é certo é que o livro prende desde a primeira linha e a partir daí é como uma sinfonia em crescendo. Guerra e Terebintina está traduzido em 29 países e foi adaptado ao teatro. O autor esteve em Portugal recentemente para apresentar a obra.