A 28.ª edição do festival Curtas de Vila do Conde começa hoje, com o resgate de “O Recado”, de Fonseca e Costa, em cartaz, um dos 261 filmes da programação que este ano estende a Lisboa, Porto e Faro.
Com dezenas de estreias nacionais e algumas estreias mundiais, o Curtas regressa com sessões ao Teatro de Vila do Conde, ao qual se juntam o Cinema Trindade (Porto), o Cinema Ideal (Lisboa) e o Auditório do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ, em Faro), além de um serviço de ‘streaming’, pago, que abrangerá cerca de 150 dos filmes selecionados.
A projeção de uma primeira versão de “O Sentido da Vida”, de Miguel Gonçalves Mendes, o cinema de mulheres como Kelly Reichardt, Cláudia Varejão e Filipa César, os novos de Rodrigo Areias e do brasileiro João Paulo Miranda, um programa dedicado a obras menos conhecidas de Jean-Luc Godard, o resgate de “O Recado”, de José Fonseca e Costa, o filme que ousou mostrar o pior da ditadura, anos antes de Abril, e as competições nacional e internacional a colocarem-se entre “as mais fortes nos últimos anos”, segundo a direção, são apenas algumas das propostas destacadas pela organização.
O Curtas abarca ainda uma secção de filmes para crianças, a “carta branca” dada ao cineasta francês Frank Beauvais, e exposições na Solar – Galeria de Arte Cinemática, que terá a primeira mostra de Lacuesta em Portugal.
O diretor, Nuno Rodrigues, sublinhou à Lusa a necessidade que o Curtas sentiu de “defender o festival em sala”, mesmo tendo em conta as limitações impostas pela pandemia de covid-19, e o adiamento da edição de julho para outubro.
Com metade do público em sala e sessões mais espaçadas no tempo, para permitir a higienização dos espaços, este é um ano diferente dos outros, afiança, mas também pelas “novas possibilidades” que a pandemia abriu. “Num ano especial, vamos fazer um festival especial”, atira à Lusa o diretor.
A organização continua a apostar num “dos pontos mais fortes do Curtas, a competição nacional”, este ano com 17 filmes a concurso, que circulará, após as sessões em Vila do Conde, por outras três cidades, permitindo uma maior apresentação das obras.
“A programação desenvolveu-se com algumas vantagens. A nacional e internacional serão, se não a mais forte, duas das mais fortes nos últimos anos. Com mais tempo, surgiram mais filmes”, admitiu Nuno Rodrigues.
Nessa conjuntura “extremamente benéfica”, que levou a um “ano extremamente feliz” em termos de programação, cabem obras de nomes como Nuno Baltazar (“Salto”), Denise Fernandes (“Nha Mila”) ou Sandro Aguilar (“Amour”), na competição nacional.
Na competição internacional, pontuam obras como “Mi Piel, Luminosa”, de Nicolás Pereda e Gabino Rodríguez, “Nina”, de Hristo Simeonov, e “Stump The Guesser”, de Guy Maddin, além de novos títulos de Pham Ngoc Lân, Jacqueline Lentzou e Carmen Leroi, enquanto a secção competitiva experimental traz trabalhos de Lúcia Prancha, Ben Russell, Salomé Lamas, Rosa Barba ou Luke Fowler.
O artista em destaque é o espanhol Isaki Lacuesta, com quatro obras e uma exposição.
O ciclo New Voices é desta vez dedicado a três realizadoras jovens: Ana Maria Gomes, a panamiana Ana Elena Tejera, que rodou um filme entre o Panamá e as Caxinas, em Vila do Conde, e Elena López Riera, que venceu um prémio no Curtas de 2019.
“São cineastas que trabalham entre a ficção e o documentário, embora com características diferentes”, o cinema de cada uma, destaca Nuno Rodrigues, que lembra a “grande diversidade” de temas da programação como um todo.
Com a norte-americana Kelly Reichardt, que apresenta a longa “First Cow”, à cabeça, mas também nomes como Cláudia Varejão ou Filipa César, o cinema no feminino tem um espaço demarcado no festival, até porque “começa a afirmar-se cada vez mais” na cena internacional.
Assim, o corpo de 261 filmes surge de uma mistura entre “realizadores muito novos e mais desconhecidos” até outros mais famosos, como o ucraniano Sergei Loznitsa, que apresenta “A Night At The Opera” em competição, ou o iraniano Jafar Panahi, que traz “Hidden”, mas também Reichardt ou Filipa César.
“Este ano, há um foco muito especial, o programa especialíssimo dedicado a Jean-Luc Godard, por Nicole Brenez. (…) São pequenas joias quase desconhecidas, um lado diferente” do cineasta francês, diz Nuno Rodrigues, sobre um programa que junta ‘trailers’, anúncios, filmes de publicidade e videoclipes de um dos ‘mestres’ da Nouvelle Vague.
O Curtas inclui também “Vencidos da Vida”, de Rodrigo Areias, e vários filmes do brasileiro João Paulo Miranda, incluíndo desde logo o escolhido para a abertura, “Casa das Antiguidades”, que foi selecionado para o festival de Cannes 2020.
Filmes como “O Cordeiro de Deus”, de David Vicente Pinheiro, ou “Meine Liebe”, de Clara Jost – recém-premiado no festival IndieLisboa -, têm destaque nas várias secções Panorama, assim como obras de realizadores romenos e polacos, primeiras obras de alunos das escolas de cinema nacionais e uma “carta branca” dada ao cineasta francês Frank Beauvais.
No Cinema Revisitado, há “One Week”, uma curta-metragem centenária de Buster Keaton, que “está sempre nas listas das melhores curtas da história do cinema”, mas destaca-se também a “habitual cooperação” com a Cinemateca Portuguesa, da qual sai a exibição da cópia restaurada de “O Recado”, de José Fonseca e Costa, um “filme marcante de toda a história do cinema português” e da afirmação do Cinema Novo, em particular.
Com data de 1971, rodado em plena ditadura, a três anos do 25 de Abril, “O Recado” é a primeira longa-metragem de Fonseca e Costa e coloca em cena a ação da PIDE, a polícia política do Estado Novo, mesmo que não chegue a ser citada.
“Este filme ousou encenar a PIDE a liquidar um resistente, ousou ser frontal e ardiloso”, escreveu o historiador e crítico Jorge Leitão Ramos, no “Dicionário do Cinema Português”, definindo “O Recado” como “o retrato firme, crispado e triste de uma geração”.
Protagonizado por Maria Cabral e José Viana, “O Recado” foi estreado no festival de Sanremo, em Itália, onde recebeu uma menção honrosa, em 1971, dando origem a mostras do novo cinema português e dos seus criadores, em várias cidades europeias, nos anos seguintes.
O filme foi digitalizado este ano no âmbito do acordo entre a Cinemateca Portuguesa e a Academia Portuguesa de Cinema, e será editado até ao final de dezembro em DVD, além do estabelecimento do ‘master’ digital, que será usado em Vila do Conde, explicou à agência Lusa o diretor do departamento de arquivo da Cinemateca Portuguesa, Tiago Baptista.
A sessão de “O Recado”, no Curtas, está marcada para hoje, às 21:45, no Teatro Municipal de Vila do Conde.