Num recanto discreto do Santa Maria Manuela, “navio-almirante” de uma expedição científica à maior montanha submarina de Portugal, no banco de Gorringe, revelam-se microcosmos de organismos marinhos escondidos em amostras recolhidas por mergulhadores e encontram-se surpresas.
Ana Hilário, investigadora no Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro, e Duarte Frade, investigador no Centro de Ciências do Mar/Universidade do Algarve (CCMAR), tentam alhear-se da azáfama permanente no salão Terra Nova, o salão principal do Santa Maria Manuela – que consoante o momento pode ser centro de investigação, auditório para reuniões de coordenação e sala de refeições e convívio – e concentram-se a examinar com lupas binoculares eletrónicas as amostras da biodiversidade do banco de Gorringe que chegam após cada mergulho.
Ao longo das três semanas da expedição os dois cientistas têm a tarefa de fazer a triagem dos organismos recolhidos em grupos principais – como crustáceos, moluscos, esponjas ou algas -, fazem a identificação das espécies e quando aparece algum organismo que pode ser uma espécie nova ou em que haja dúvidas na identificação, recolhem amostras de tecido que depois serão submetidas a análise genética em laboratório.
E no trabalho de triagem surgem surpresas como a descoberta do ‘Jujubinus browningleeae’, um búzio com apenas alguns milímetros de comprimento que é uma espécie endémica da montanha submarina cujos dois picos, o Gettysburg e o Ormonde, estão a ser estudados pelos cerca de 30 cientistas de 14 centros de investigação que participam na expedição, promovida pela Fundação Oceano Azul, Oceanário de Lisboa, Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e Marinha Portuguesa para fazer um primeiro levantamento sistemático da biodiversidade do banco de Gorringe.
“Este pequeno búzio com um nome impossível já tinha sido descrito em 2018, com base em conchas encontradas aqui e agora têm aparecido exemplares vivos nas amostras recolhidas. O grupo a que pertence é endémico de habitats de montes submarinos no mediterrâneo, mas esta espécie em concreto só é conhecida aqui no banco de Gorringe. Não sabemos ainda quase nada sobre esta espécie. A própria aparência do animal vivo nunca tinha sido descrita, e é isso que vamos conseguir fazer agora”, diz Duarte Frade com um entusiasmo que ilustra a proporção inversa entre o tamanho e o interesse científico da descoberta.
O investigador do CCMAR adianta que na expedição estão também a ser encontradas espécies que, não sendo desconhecidas, não estavam referenciadas no banco de Gorringe.
No seu recanto discreto, Ana Hilário e Duarte Frade desvendam e classificam os microcosmos que povoam pedaços de rocha ou a base das laminárias, grandes algas castanhas que formam uma floresta submarina que é um dos emblemas do banco de Gorringe, e estão a criar uma base dados de referência das espécies encontradas na montanha submarina que se ergue desde os 5.000 metros de profundidade até a cerca de 30 metros da superfície do Atlântico.
“Há mais de 500 exemplares que já estão no catálogo da biodiversidade do banco de Gorringe. De muitos já sabemos o nome e fica registado que existem aqui, de outros temos dúvidas ou desconhecemos a que espécie pertencem e nesses casos ficam referenciados para análise posterior”, diz Ana Hilário enquanto inspeciona, literalmente à lupa, uma amostra.
“Esta é a primeira vez, que eu tenha conhecimento, que se está a fazer um estudo tão sistemático da macrofauna (grupo de animais muito pequenos, com tamanhos entre 0,25 milímetros e dois milímetros) deste local. Este grupo engloba toda a variedade de vida marinha, mas é um segmento pouco estudado, por isso entre os exemplares agora recolhidos a probabilidade de serem encontradas espécies novas é maior. Isto significa que ainda há muito trabalho a fazer nos centros de investigação depois desta triagem inicial”, adianta a investigadora.
O trabalho dos dois cientistas é também o de avaliar a densidade de organismos que povoam as amostras recolhidas pelos cientistas durante os quatro mergulhos por dia realizados por equipas que se vão revezando. No total, a expedição contabiliza cerca de 200 mergulhos.
O tamanho das amostras não deixa adivinhar o universo que contêm. Nos cerca de 15 centímetros de diâmetro de um prato de petri que Duarte Frade tem sob a lente da lupa eletrónica, um fragmento da base de uma laminária pode conter uma ou duas dezenas de espécies de organismos minúsculos.
Duarte Frade esclarece que “são camadas sobrepostas de organismos na matriz de suporte que constitui a base da laminária. Há, por exemplo, uma alga calcária que se instala na base da grande alga, depois há invertebrados que se instalam sobre a alga calcária e outros organismos, desde crustáceos a moluscos e a esponjas que se vão instalando e criando um microcosmos.
E há uma rivalidade bem-disposta entre os dois do recanto discreto e os que recolhem as amostras durante os mergulhos.
“Chegam entusiasmados e entregam-nos o que recolheram contando o que viram durante os mergulhos”, desde os cardumes de pelágicos ou o espetáculo da floresta de laminárias até à concentração de tremelgas (raias elétricas) que também é um dos ex-libris do banco de Gorringe, “mas depois nós mostramos-lhes a enorme variedade de organismos, de cores e de formas que essas amostras contém e que acabam por surpreendê-los”, diz Ana Hilário.
Os picos Gettysburg e Ormonde – apesar de submersos, ao elevarem-se desde profundidades de cerca de 5.000 metros são mais altos que as montanhas do Pico (Açores) e Serra da Estrela juntas e são as montanhas mais altas da Europa ocidental – são ecossistemas de elevada biodiversidade, com habitats que vão desde as florestas de algas perto da superfície até recifes de coral de água fria a grandes profundidades.
A cerca de 130 milhas náuticas (cerca de 240 quilómetros) a sudoeste do cabo de S. Vicente, no Algarve, o banco de Gorringe foi originalmente cartografado em 1875 por Henry Gorringe, comandante do navio da marinha dos Estados Unidos USS Gettysburg e é uma cordilheira submarina com cerca de 180 quilómetros de comprimento e 60 quilómetros de largura.
João Miguel Roque (texto) e André Kosters (foto), agência Lusa
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