É grande a variedade de organismos marinhos recém-colhidos nas águas do Atlântico que chegam ao convés do antigo bacalhoeiro Santa Maria Manuela para serem estudados e fazerem parte do levantamento da biodiversidade da maior montanha submarina de Portugal, a sudoeste do cabo de S. Vicente.
São pedaços de rocha, pequenos ramos de gorgónias (animais semelhantes a corais) ou pedaços de laminárias (grandes algas que formam florestas subaquáticas), que servem de habitat para vermes, crustáceos ou moluscos e constituem o propósito da expedição científica que durante três semanas explorou dois dos picos, o Gettysburg e o Ormonde, do banco de Gorringe, cerca de 130 milhas náuticas (cerca de 240 quilómetros) a sudoeste do cabo de S. Vicente, no Algarve.
É no convés do Santa Maria Manuela que, antes de partir para mais um mergulho de recolha de amostras de organismos marinhos, a investigadora Ester Serrão fala da importância de proteger ecossistemas como o do banco de Gorringe para “preservar a diversidade genética” da vida marinha.
“É fundamental proteger este tipo de ecossistemas porque são um repositório de diversidade genética a uma escala que já não se encontra nas zonas costeiras onde a diversidade de espécies é muito menor”, afirma a professora na Universidade do Algarve, investigadora do Centro de Ciências do Mar do Algarve (CCMAR) e coordenadora dos trabalhos de levantamento da biodiversidade do banco de Gorringe que a expedição está a fazer.
Ester Serrão alerta que o chamado restauro de ecossistemas não é solução porque “pode ser conseguido um repovoamento e chamar-se-lhe restauro mas a base de diversidade genética é muito inferior à de ecossistemas como este, que têm grande potencial evolutivo, obviamente numa escala temporal que transcende as gerações humanas, devido precisamente à diversidade”.
Como argumentos em defesa da importância crítica de conservar os ‘hot spots’ de diversidade, que são fundamentais para manter a variedade genética dos organismos, no regresso de cada mergulho os cientistas que trabalham a bordo do Santa Maria Manuela acrescentam mais exemplares ao espólio de amostras da variedade que encontraram e que são mantidas vivas ou preservadas no laboratório de biologia marinha em que se converteu o convés do navio da antiga “Frota Branca” da pesca do bacalhau, com tanques de água salgada para guardar espécimes vivos e mesas para preparação de espécimes a serem estudados.
As amostras são exemplares de seres vivos, mas também podem ser apenas água, para ser depois analisada para deteção de ADN ambiental (e-DNA, na designação mais comum em inglês) que permite identificar através da informação genética presente na água que tipo de espécies vivem numa determinada zona mesmo sem serem visualizados exemplares dessas espécies.
A biodiversidade do banco de Gorringe fica clara quando Ester Serrão diz que no caso dos invertebrados, grupo que inclui desde vermes a moluscos e crustáceos, nas amostras recolhidas cerca de 70 espécies foram identificadas pelos investigadores no local e cerca de 300 terão ainda de ser sujeitas a análises moleculares posteriores para a identificação precisa. “Há muito trabalho que só vai começar quando a expedição terminar”.
“Este ecossistema ainda revela o que terão sido os recifes de formações rochosas na costa e mostra o nível de biodiversidade e de densidade de espécies que já se perdeu. Aqui não há uma rocha que não esteja coberta de organismos numa abundância e concentração que já não se consegue encontrar em outros locais. Mas não se pode falar de um ecossistema intocado e já há sinais de desequilíbrio. Há uma base da cadeia alimentar muito rica, mas faltam os predadores maiores. O impacto da pesca já é visível”, afirma Ester Serrão.
A presença humana manifesta-se numa garrafa de plástico, recolhida durante um dos mergulhos dos cientistas, já colonizada por perceves pelágicos do género ‘Lepas’ e em cabos de aparelhos de pesca abandonados também já colonizados por algas, invertebrados e crustáceos.
No convés do Santa Maria Manuela foi também montado um centro de mergulho onde é preparado todo o equipamento necessário ao trabalho subaquático, que se desenrolou a profundidades médias de 45 metros. A exploração de zonas mais profundas, até aos 200 metros, foi feita com recurso a vídeo recolhido por um veículo subaquático controlado remotamente (ROV).
Mas o ecossistema do banco de Gorringe, localizado a sudoeste do cabo de S. Vicente, estende-se até aos 5.000 metros de profundidade e mantém-se na maior parte inexplorado.
Os montes submarinos Gettysburg e Ormonde são, apesar de submersos, mais altos que as montanhas do Pico (Açores) e Serra da Estrela juntas e são as montanhas mais altas da Europa ocidental. São ecossistemas de elevada biodiversidade, com habitats que vão desde florestas de algas perto da superfície até recifes de coral de água fria a grandes profundidades.
Localizado a sudoeste do cabo de S. Vicente, o banco de Gorringe foi originalmente cartografado em 1875 por Henry Gorringe, comandante do navio da marinha dos Estados Unidos USS Gettysburg e é uma cordilheira submarina com cerca de 180 quilómetros de comprimento e 60 quilómetros de largura.
A campanha científica no banco de Gorringe – promovida pela Fundação Oceano Azul, Oceanário de Lisboa, Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e Marinha Portuguesa – é um esforço para impulsionar o caminho de Portugal no cumprimento da estratégia europeia de conseguir que até 2030 pelo menos 30% do oceano seja protegido, com pelo menos 10% com proteção estrita.
A expedição tem o envolvimento institucional do Governo Português, Fundo Ambiental, Autoridade Marítima Nacional, Oceana, National Geographic Pristine Seas e Waitt Institute.
A equipa científica envolve o Instituto Hidrográfico, IPMA, e os centros de investigação CCMAR – Universidade do Algarve, CESAM – Universidade de Aveiro, CIBIO e CIIMAR – Universidade do Porto, MARE – IPLeiria, Okeanos – Universidade dos Açores, Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), Associação para a Investigação dos Mamíferos Marinhos (AIMM), Aquário Vasco da Gama, Moss Landing Marine Laboratories da universidade de San Jose (Estados Unidos), Marine Futures Lab da universidade de Western Australia e o Laboratory of Applied Bioacoustics da Universidade Politécnica da Catalunha.
João Miguel Roque (texto) e André Kosters (foto), agência Lusa
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