Já lá ia quase uma semana de guerra e na cidade de Tcherkássi, no centro da Ucrânia, era como se nada se passasse. Ao final do dia, perto da hora de jantar, William López comentava com a mulher, ucraniana, como estavam a escapar à violência do conflito. “Vinte ou 30 minutos depois e caiu um rocket ao pé de nossa casa. Ali a cinco minutos do sítio onde vivemos”, conta ao Expresso o luso-brasileiro de 26 anos. Nunca antes uma bomba explodira ao lado de William. Não fazia ideia do que isso era além dos filmes.
Nessa noite passaram mais quatro rockets.
“Está tudo diferente desde a última vez que falámos. Há mais tensão e a guerra espalhou-se por todo o país. Acordamos com a sirene, almoçamos com a sirene, jantamos com a sirene, adormecemos com a sirene”, diz ao Expresso William. “Desde então, as sirenes não param. Estão a sair rockets da Bielorrússia e da Crimeia.” As rotinas mudaram: acordam mais cedo para aproveitar a primeira luz do dia, deitam-se o mais cedo possível para evitar acender luzes e o inimigo perceber que ali vivem pessoas. “Costumávamos dar banho ao meu filho à noite porque a água quente acalma os bebés e ajuda a adormecer. Passamos a dar-lhe de manhã, às 20h já estamos todos na cama.” A guerra complica-se sempre durante a noite.
Foi logo no começo da invasão russa, que o Expresso começou a recolher depoimentos de William. Disse-nos que não fazia qualquer intenção de sair da Ucrânia, uns dias depois, falou-nos de como tinha um plano de emergência e toda a família se estava a reunir para fugirem todos juntos caso fosse necessário. Agora, diz-nos que as sirenes que nunca tinham tocado, tocam com frequência. “Mesmo quando não tocam parece que tocam, tenho o som preso na cabeça. É como aquelas músicas que ouvimos uma vez e depois andamos uma série de tempo com aquilo sempre presente. É igual”, compara.
Cada vez que a sirene realmente toca, William, a mulher e o filho de nove meses descem para o abrigo na cave do prédio onde moram. “São construções do tempo da União Soviética, os ucranianos estão preparados e construiram abrigos para se protegerem em situações destas. Não é um bunker, mas é um abrigo com ligação e saídas para o caso de precisarmos de fugir”, descreve.
Na quinta-feira, pela primeira vez em vários dias conseguiram sair à rua. “É uma espécie de vitória.” Quase não houve sirenes durante todo o dia. Mas os passeios em grupo são motivo de tensão porque “todas as pessoas desconfiam uma das outras”. Os desenhos e símbolos que agora se vêem nas paredes dos edifícios são escrutinados para perceber se têm ligação a algum dos lados do conflito.
“A vida mudou completamente. Continuamos a dar graças a Deus por termos comida e estar tudo disponível. Ainda assim, temos as malas prontas, água e tudo pronto para termos de fugir caso seja necessário. Durante o dia estamos sempre todos vestidos e preparados para termos de ir a qualquer momento”, diz William. E por todos, entenda-se William, a mulher e o filho mais os familiares que vieram de outros pontos do país para ficarem todos juntos. “Somos 12 no total.”
A vizinha da frente de William, tal como muitos outros ucranianos, deixou tudo para trás e foi para o campo, onde é mais difícil a guerra chegar. Alugaram-lhe a casa para que os 12 tivessem mais espaço. “Durante o dia ficamos todos aqui no nosso apartamento, à noite dividimo-nos para que todos possam dormir em corredores e ficarem mais protegidos”, diz. “Temos três carros prontos, mas a gasolina está limitada a 20 litros. As estradas entre cidades estão cortadas seja porque foram destruídas pelos russos ou pelos ucranianos, para evitar que os russos avançassem. Ainda assim, quando quisermos ir, não é impossível. Encontra-se sempre uma forma.”Em Tcherkássi, a cerca de 200 km de Kiev, as ruas estão desertas mas as bandeiras ucranianas continuam erguidas
Há pouco mais de uma semana, sair da Ucrânia não era de todo a ideia que passasse na cabeça de William. “Lembro que lhe disse que só sairia se começassem a passar rockets por cima da minha cabeça. Passaram e ainda não me fui embora. Como não tinha imaginado aquela situação, disse aquilo. Mas agora sinto-me ainda mais forte. Parece que quanto mais a guerra passa, mais corajosos ficamos.”
Na noite em que a bomba explodiu ao lado de casa, William e mulher falaram. Ele, sendo luso-brasileiro, não está abrangido pela lei marcial que proíbe todos os ucranianos entre os 18 e 60 anos de saírem do país para ficarem a lutar. “Eu sair nunca iria acontecer. Esta família recebeu-me de uma forma incrível. Eles fazem parte de mim. Mesmo não sendo ucraniano eu fico. Disse à minha mulher que arranjávamos forma dela e o bebé ficarem a salvo. Mas eu ficava. Ela também não quis. Nós ou saímos todos ou não sai ninguém. Claro que ponderamos um bocadinho a possibilidade, mas excluímos a ideia.”
Entre o grupo de 12 pessoas em que William está, há quatro homens elegíveis para ir para a guerra. “Não sou ucraniano e nunca pensei que me passasse um rocket por cima. Vejo os ucranianos unidos, prontos a defender o país e esse espírito de defesa entra em nós. Agora sim, acredito que um povo unido jamais será vencido.” O português não quer pegar em armas e ir para a guerra, mas se esta lhe aparecer à frente, não vai fugir. “Estou a levar este barco como posso.”
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL