Vários motivos têm sido avançados para explicar a decisão tomada por Vladimir Putin de invadir a Ucrânia na semana passada, desde o desejo de reconstituir o império russo (ou, no mínimo, o estatuto da Rússia como grande potência, após as humilhações pós-soviéticas) até à recusa de ter ao lado um país com uma História e uma cultura intimamente ligadas às da Rússia mas que demonstra ser possível constituir dentro dessas tradições uma democracia funcional e próspera — exatamente o oposto do que acontece na Rússia atual. Também se alegam motivos de sobrevivência pessoal (Putin já roubou e matou demais para ser seguro alguma vez deixar o poder, sugeriu a revista britânica “The Economist”; uma guerra rápida e bem-sucedida é a forma última de unir um país), teimosia vingativa por não o levarem a sério como estadista, preocupação com o seu futuro lugar nos livros de História, ou até um eventual princípio de loucura em alguém que se encontra há muito no poder e tem vindo a isolar-se progressivamente de quaisquer vozes que o pudessem contrariar.
Independentemente das razões que possam ter levado Putin a fazer o que fez, o facto é que as suas ações não aconteceram no vazio, em termos históricos. Há uma longa continuidade imperial na Rússia que vem pelo menos desde Ivan IV o Terrível, segue pela dinastia Romanov e se consuma de forma ideologicamente transfigurada na União Soviética (“Nicolau I teria chorado de emoção nos braços paternais de Estaline”, escreveu Vasco Pulido Valente em 1989). Na semana passada, no discurso em que anunciou o reconhecimento da independência das repúblicas de Luhansk e de Donetsk, antes de lançar a invasão militar da Ucrânia, Putin reiterou uma visão que já lhe tínhamos ouvido aquando da anexação da Ucrânia em 2014 e que ele desenvolveu no ano passado num longo ensaio intitulado “Sobre a Unidade Histórica de Russos e Ucranianos”. Esse texto — onde Putin diz que “a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia”, ou seja, sem verdadeira soberania — foi rapidamente decretado leitura obrigatória para os soldados e marinheiros russos, portanto doutrina oficial, o que justifica uma leitura atenta, para entender a sua linha de pensamento e para ver o que ele tem de enviesado no modo como retrata a História.
Putin começa por descrever as tensões dos últimos anos entre os povos russo e ucraniano como “o nosso infortúnio e tragédia comuns”. Segundo diz, a situação resultou de erros da Rússia e também “dos esforços deliberados das forças que sempre procuraram minar a nossa unidade”, dividindo para reinar.
A seguir, o ensaio faz uma viagem pela História, começando pelo Antigo Rus, a que ele chama o mais antigo Estado da Europa. O Rus — ou Rus de Kiev, pois tinha sede na atual capital da Ucrânia — está na origem da Rússia, da Bielorrússia e da Ucrânia. Era governado por príncipes da dinastia Rurik, de origem viking, e tinha não só uma linguagem comum como uma mesma religião, a partir do momento em que Vladimir I (956-1015) se converteu ao cristianismo, em 988. “Essa escolha espiritual ainda hoje determina largamente a nossa afinidade”, diz Putin, referindo-se aos três países que descendem do Rus.
Um profeta citado numa velha crónica terá dito que Kiev seria a mãe de todas as cidades russas. Mas na sequência de divisões após a morte do príncipe Yaroslav I (978-1054) e do declínio dos laços comerciais com o império bizantino que alimentavam a prosperidade de Kiev, o Rus entrou em decadência, acabando a cidade por ser devastada na invasão mongol de 1240. Os mongóis ficaram a dominar a zona nordeste do Rus, com as terras a sul e a oeste integradas no Grande Ducado da Lituânia, outra potência da altura. As guerras e as alianças foram variando, como era típico na Idade Média, mas a língua e a fé do Rus permaneceram sempre as mesmas, garante Putin.
Com a ascensão gradual dos príncipes de Moscovo, as terras ancestrais do Rus começaram novamente a ser reunidas. Entretanto, no século XVI, a criação da República das Duas Nações (ou comunidade polaco-lituana) fez com que parte das terras ucranianas a ocidente passassem a estar submetidas ao Papa. No século XVII, a reação dos ortodoxos levou a uma rebelião cossaca (os cossacos eram um grupo de comunidades semimilitares, originalmente constituídas por camponeses e habitantes das estepes que se destacaram tanto na Ucrânia como na Rússia; o seu líder aceitou a autoridade do czar em 1654, e com o tempo os cossacos viriam a ascender a postos elevados no império, conta Putin). A leste do rio Dnieper — que divide o atual território da Ucrânia —, a zona sob aquilo a que Putin chama “a proteção do Estado unificado” conheceu rápido desenvolvimento, ao contrário do que acontecia na zona a ocidente do Dnieper.
Pelo meio houve outros conflitos, incluindo com o Império Otomano. Em 1783, a imperatriz Catarina a Grande anexou a Crimeia, e por volta da mesma altura foram incorporados territórios que hoje correspondem à parte leste da Ucrânia e a que Putin chama “as terras russas ocidentais”. Segundo ele, a incorporação não teve motivos políticos, assentando em afinidades de língua, religião e cultura.
O resto do ensaio segue na mesma veia. Putin reconhece as “peculiaridades” e diversidades regionais, mas insiste na herança comum. Admite que às vezes havia discriminação contra a língua ucraniana na Rússia, “mas é importante ter em atenção o contexto histórico”. E quando o conceito de uma nação ucraniana distinta começou a surgir, foi unicamente por iniciativa de certas elites estrangeiras ou com ligação ao estrangeiro, “pois não havia base histórica, nem poderia haver nenhuma”.
Na sequência da I Guerra Mundial surgiu uma república ucraniana independente, que durou pouco tempo, e em 1918 o próprio Lenine decidiu atribuir à Ucrânia (arbitrariamente, depreende-se pelo texto) todo o território que hoje a constitui. A Ucrânia, convém notar, tornou-se uma das repúblicas que constituíam a URSS desde a sua fundação, pelo que a decisão de Lenine não implicou reconhecer a independência política desse território. Outra decisão mal pensada do líder bolchevique foi a de conceder a essas repúblicas o livre direito à secessão. “Uma perigosa bomba-relógio”, diz Putin, que levaria a uma “parada de nacionalidades” no início dos anos 90.
Putin critica igualmente a integração da Crimeia na Ucrânia em 1954, por iniciativa de Khrushchev, o então secretário-geral do Partido Comunista soviético e líder do país. Terá sido não só mais uma decisão arbitrária como ilegítima do ponto de vista formal — “em grosseira violação das normas legais em força na altura”, escreve Putin.
Em suma, “a Ucrânia moderna é inteiramente produto da era soviética”. “Sabemos e recordamos bem que foi formada — em parte significativa — nas terras da Rússia histórica. Basta olhar para as fronteiras das terras reunidas com o Estado russo no século XVII e o território da Ucrânia quando deixou a União Soviética.”
“Os bolcheviques trataram o povo russo como material inesgotável para as suas experiências sociais”, diz Putin. “Sonhavam com uma revolução mundial que varresse os Estados nacionais. Por isso foram tão generosos a desenhar fronteiras e a conceder prendas territoriais.”
“Já não é importante qual foi a ideia dos líderes bolcheviques quando estavam a cortar o país em pedaços”, diz. “Podemos discordar em detalhes menores, o background e a lógica por trás de certas decisões, mas um facto é perfeitamente claro: a Rússia foi roubada, na verdade.”
Quanto à Ucrânia, a questão é clara. “Na essência, as elites governantes da Ucrânia decidiram justificar a independência do seu país através da negação do seu passado”, escreve Putin. “Começaram por mitologizar e reescrever a História, excluir tudo o que nos unia e referir-se ao período em que a Ucrânia fazia parte do Império Russo e da União Soviética como uma ocupação.”
Os mitos que alimentam nações
Todas as nações são construídas, pelo menos parcialmente, com base em mitos. Num texto incluído em “Nation-Building in the Post-Soviet Borderlands — The Politics of National Identities” [Construção de nações nas terras de fronteira pós-soviética — as políticas de identidades nacionais], um volume coletivo editado pela Cambridge University Press, o historiador britânico Andrew Wilson desenha uma tipologia de mitos presentes nas narrativas nacionais da Ucrânia, da Rússia e da Bielorrússia. O mito da etnogénese e o mito do lar são dois dos mais importantes, associando o alegado carácter nacional potencialmente imutável de um povo e a sua permanência num determinado território. A isto estão naturalmente ligados mitos de fundação, que estabelecem (e santificam) um determinado momento em que o povo em causa aparece na História.
A seguir, Wilson refere mitos de uma era dourada, de império, de agressão e exploração, de sofrimento e resistência, de renascimento… Existem igualmente mitos que falam de algum ‘outro’ ou outros e (em especial no caso de países como a Rússia, tradicionalmente inseguros em relação à manutenção do seu império ou do seu estatuto) mitos sobre intrigas e conspirações estrangeiras que procuram aniquilar o país.
Largas partes dessa tipologia são aplicáveis ao ensaio de Putin e à propaganda russa em geral. Sobre as supostas conspirações da NATO (e não só) contra a Rússia, tem-se ouvido muito. Mas a mitologização começa a um nível mais fundamental. Veja-se o mito das origens, por exemplo. Além de ser bastante discutível que o Rus tivesse a natureza coesa que Putin lhe atribui — os historiadores descrevem-no geralmente como uma federação solta de principados —, tomá-lo como base para determinações políticas no presente é arbitrário, o que não impede os políticos de o fazer.
“A historiografia pan-eslávica ou russófila tem a sua própria estrutura mítica”, escreve Graham Smith em “Nation-Building in the Post-Soviet Borderlands”. “Desde logo, o mito persistente da origem comum dos três povos eslavos do leste, reforçado por mitos de separação que alegam que a sua divergência entre os séculos XIII e XVII foi unicamente o resultado de divisões políticas artificiais e que, em qualquer caso, foi muito superficial. Em segundo lugar, portanto, mitos de reunião nos séculos XVII e XVIII, juntamente com mitos de ortodoxia comum e a consequente existência de uma comunidade de destino como a inspiração principal para a reunião. É negado que só o ‘império’ tenha juntado esses três povos. Os renascimentos nacionais ucraniano e bielorrusso do século XIX são explicados e menosprezados através de mitos de intriga estrangeira. O verdadeiro ‘outro’ para todos os eslavos de leste é representado em mitos da ameaça tártara, polaca, alemã/Habsburgo ou papal, e mitos de empreendimento comum são construídos em torno da resistência comum de todos os três povos e tais perigos externos.”
Há quem recue ainda mais. Andrew Wilson, no volume atrás referido, diz a propósito da alegada antiga nação Rus única (drevni russkii narod): “Mesmo antes da fundação do Rus, alega-se que os eslavos de leste partilhavam ‘uma única língua e uma cultura e religião comum’ e aliavam-se numa luta coletiva contra inimigos comuns tanto a este como a oeste. Na época de Vladimir (Volodymyr), portanto, o ‘monólito nacional’ tinha desenvolvido uma força e solidez suficientemente extraordinárias para durar ao longo dos séculos de divisão subsequentes”.
Na verdade, os quatro séculos de separação após o século XIII tiveram efeitos profundos, com a influência extensa dos elementos polaco e lituano sobre a Ucrânia. E o incremento de uma diferenciação linguística que já existia mesmo no século XII, ao contrário do que Putin afirma. A própria cultura russa mudou muito mais do que Putin admite, embora noutro sentido. Segundo escreve outro historiador, Serhii Plokhy, em “The Origins of Slavic Nations” [As origens das nações eslavas], “um exame atento das instituições administrativas e militares do Muscovy pós-mongol torna difícil rejeitar o argumento de eurasianistas russos e académicos ocidentais, como Keenen e Ostrovsky, de que o Estado russo do início da modernidade foi muito mais o produto da sua recente experiência mongol do seu passado kievano cronológica e geograficamente distante (…) A longa habituação ao domínio mongol levou Muscovy a adotar uma série de elementos importantes da sua cultura e pensamento políticos, tal como as suas práticas sociais e económicas. Esses elementos incluem o conceito de que toda a terra pertence ao governante; a estrutura do conselho boiardo; o sistema de administração dual, no qual o poder regional militar e civil estava concentrado em representantes do centro; a instituição do mestnichestvo, que fazia o estatuto do servidor dependente do da sua família; e a concessão de terra sob condição de serviço militar (…). Todas estas instituições e práticas, com frequência partilhadas com terras tão distantes como a China, ajudaram a formar as características básicas de Muscovy como uma entidade política, social e económica. Também ajudaram a diferenciar os eslavos de leste no que respeita ao seu entendimento das tradições bizantinas e kievanas”.
Dos debates sobre essencialismos para questões mais concretas. No seu ensaio, ao referir-se ao Holodomor — a fome maciça instigada por Estaline no início dos anos 30, que matou milhões de ucranianos —, Putin critica aquilo que vê como mais uma distorção: “A tragédia comum da coletivização e da fome no início dos anos 30 foi retratada como o genocídio do povo ucraniano.”
Em “Red Famine: Stalin’s War Against Ukraine” [Fome vermelha: a guerra de Estaline contra a Ucrânia], a historiadora e jornalista Anne Applebaum escreve: “As políticas de Estaline nesse outono levaram inexoravelmente à fome em todas as regiões produtoras de cereais na URSS. Mas em novembro e dezembro de 1932 ele torceu ainda mais a faca na Ucrânia, gerando deliberadamente uma crise mais profunda. Passo a passo, usando linguagem burocrática e terminologia jurídica cinzenta, a liderança soviética, ajudada por colaboradores ucranianos submissos, lançou uma fome dentro da fome, um desastre especificamente dirigido à Ucrânia e aos ucranianos. Várias séries de diretivas, sobre requisições, quintas e aldeias na lista negra, controlos fronteiriços e o fim da ucranização [a orientação bolchevique de promover a cultura e a linguagem ucraniana nos anos 20, que Estaline inverteu depois brutalmente] criaram a fome agora recordada como o Holodomor. O Holodomor, por sua vez, teve o resultado previsível: o movimento nacional ucraniano desapareceu completamente da política e da vida pública soviética.”
Já em 1922, numa carta citada por Applebaum, Estaline diz ao seu colaborador Viatcheslav Molotov, futuro ministro dos Negócios Estrangeiros, que é preciso “dar a essa gente [os ucranianos] uma lição agora mesmo, de modo que eles não se atrevam sequer a pensar em resistência nas próximas décadas”. Dez anos depois, quando a fome na Ucrânia estava em vias de atingir proporções catastróficas, o regime voltou a culpar a ucranização: “Kulaks, antigos oficiais Brancos, cossacos e membros do Kuban Rada — os que tinham lutado, durante a guerra civil, por um Estado cossaco independente em Kuban — foram todos culpados”, escreve Applebaum. “Eram nomeados e associados uns aos outros como ‘ucranianos’ ou pelo menos como os beneficiários da ucranização.”
Bjorn Alexander Duben, professor de Diplomacia e Estudos de Segurança no King’s College London, tem ao longo dos anos analisado as distorções históricas de Putin e dos seus próximos. Em 2020, num texto publicado no blogue da London School of Economics, transcreveu palavras de Vladislav Surkov, o principal ideólogo do Kremlin: “Não existe Ucrânia. Existe ucranianice. Isto é, uma desordem mental específica. Um espantoso entusiasmo pela etnografia, levado ao extremo (…). Não existe uma nação. Existe apenas uma brochura, ‘A Autodesignada Ucrânia’, mas não há Ucrânia.” A mesma ideia que agora repetiu o ex-Presidente russo Dmitry Medvedev, antes considerado moderado.
Na verdade, Duben já tinha mostrado que antes do século XIX não havia uma presença russa substancial nas zonas de leste da Ucrânia que Putin agora reclama e que mesmo anos após a revolução russa os cidadãos de etnia ucraniana eram em número superior aos de etnia russa. “O que finalmente mudou isto nos anos 30 foi a devastação demográfica provocada pelo genocídio agrícola de Estaline, o Holodomor” (tal como a predominância demográfica russa na Crimeia que Putin invocou para justificar a anexação em 2014 “só foi firmemente solidificada com a deportação em massa da população tártara inteira da Crimeia, assim como das populações mais pequenas de etnia arménia, búlgara e grega, a instâncias de Estaline em 1944”, explicou Duben num outro texto).
A resistência também é um elemento na criação de uma consciência nacional. Em “The Ukranians: Unexpected Nation” [Os ucranianos: nação inesperada], Andrew Wilson confirma que grande parte dos políticos russos, uma década após a independência da Ucrânia, decidida por uma larguíssima maioria da população em referendo (mesmo as zonas do leste votaram a favor), ainda não se tinha verdadeiramente compenetrado de que esse país tinha uma existência autónoma.
“A Ucrânia tende a ser definida por referência à unidade do território e do povo do Rus e não por qualquer consideração da História subsequente ou da realidade de uma geopolítica especificamente ucraniana.” Wilson nota que esses pontos de vista coincidem em boa medida com os da opinião pública na Rússia e que muitos russos continuam a pensar que o termo ‘ucraniano’ foi inventado em Viena e Berlim como forma de minar o Estado russo. “A Ucrânia é, em resumo, (ainda) uma parte natural da Rússia.” Para Putin e os seus ideólogos, “ou ucranianos e russos são uma nação ou as partes ‘russo-lite’ devem ser subdivididas do resto”. O objetivo último de Putin até agora era tornar a Ucrânia um Estado disfuncional, mas pelos vistos não chegou.
Contra os nacionalistas que veem a sua nação como uma entidade histórica, Wilson nota o papel decisivo do acaso na formação das nações e, a propósito da ideia nacional de que os ucranianos falam, comenta: “Precisamente. Conceitos como ‘nação’ pertencem realmente ao reino das imaginações políticas e culturais.” Para justificar o título do seu livro, explica que o aparecimento de uma Ucrânia independente em 1991 surpreendeu governos, empresas e professores no Ocidente. Admite que os múltiplos níveis e padrões de diversidade na Ucrânia faziam dela um candidato improvável a nação nova. “Porém, uma nação inesperada é ainda assim uma nação — nem mais nem menos do que muitas outras”, conclui.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL