No final dos anos 70, Portugal notava a chegada dos carregamentos de drogas pesadas, como a heroína ou a cocaína, e nos efeitos destas nas pessoas. Com o fim da ditadura, estas também foram o anseio da liberdade.
Primeiro, levaram mão dura dos governos, sucessivamente e até abril de 1999 a situação só piorava.
Não havia família “sem algum viciado”. As palavras que João Goulão deu ao jornal espanhol ‘El Pais’ também se encontram no poema de José Luís Gordo cantado na voz do fadista Vitor Miranda sobre um dos maiores mercados de droga no centro de Lisboa, o bairro da Meia Laranja.
Onde a morte anda a viver
Há milhares de olhos baços
A vida tem quatro braços
Para a morte se esconder
Sempre como quando decorre o tempo sobre um mal comum, aumentava o consumo ao mesmo ritmo das doenças infeciosas, que cresciam como a sobrelotação das prisões.
Deu-se, depois, um passo visto como exemplar: descriminalizou-se o consumo. Um passo que converteu “drogados” em toxicodependentes, criminosos em doentes.
20 anos depois da descriminalização do consumo em Portugal, a malha europeia abarca diversas estratégias de combate. E João Pedro Matias, analista científico do consumo de droga no Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA), diz que assim deve ser. Com uma certeza: passar das ruas para as salas de chuto é um passo necessário que falta dar em Portugal.
Que importância teve este avanço dado há 20 anos, para Portugal e para outros países?
Não é muito fácil olhar para os dados e conseguir uma relação direta entre uma mudança política e decréscimos nos consumos. Aos olhos de outros países, tem sido visto como uma abordagem alternativa em relação aos problemas das adições. Mas também devemos frisar que, em 27 países membros, há 27 modelos e situações completamente diferentes. Portanto, não existe um modelo perfeito aplicável e reproduzível em todos os países.
E o que lhe parece esta medida? Até que ponto, nos dias que correm, faz sentido criminalizar alguém por consumo de droga
Existe um plano de ação para as drogas, a nível europeu, baseado em evidência científica e numa perspetiva balanceada que conjuga o lado da saúde, em que um consumidor de drogas tem de ser visto como a precisar de tratamento, e uma componente de justiça, em que a polícia tem um papel. O modelo português foi e é ainda inovador. Foi baseado em evidência científica e naquilo que produzia efeito no terreno. Nós, enquanto agência europeia, só agradecemos que tenham sido tomadas medidas com um enfoque tão grande na saúde pública.
Mas olhando para a diminuição de consumos (1% da população desceu para 0,3%, no caso da cocaína e da heroína), de mortes por overdose e de doenças infecciosas (as infeções por VIH entre os consumidores caíram para metade), o modelo português funciona.
Olhando para os dados, puramente, há claramente uma diminuição das overdoses fatais em Portugal, seguindo uma tendência europeia. Apesar de nos últimos anos termos visto um aumento de overdoses fatais, não é nada comparável aos números que se viam nos anos 80 e 90. Em termos de consumos, é importante referir que, em Portugal, estão abaixo da média europeia, como sempre estiveram. Mas não existem dados de consumo antes da mudança da lei, em 2001.
A pandemia precipitou uma mudança?
Com a pandemia, tivemos de adaptar as nossas metodologias de investigação para tentarmos perceber o que aconteceu. Claramente temos de distinguir dois períodos: aquele que começou em março de 2020, quando todos fomos para casa, e o período em que as medidas aligeiraram.
No primeiro, houve uma diminuição dos consumos, principalmente das substâncias mais associadas ao contexto noturno e a festivais, como o ecstasy ou a cocaína. Por outro lado, na canábis vemos que aqueles que já consumiam de forma regular, começaram a consumir mais, por ansiedade de estarem fechados em casa. Os que consumiam menos, diminuíram ainda mais os consumos. No início houve uma quebra.
No segundo, com a abertura dos bares e da noite, no verão, vimos novamente um aumento dos consumos, quer da cocaína quer do ecstasy, em Portugal e na Europa. Ainda assim, não nos valores de 2019.
Porque razão não voltaram aos valores de 2019?
Porque ainda muito países europeus têm restrições para os bares e as discotecas. Quase não existiram festivais de música. Tudo isso influencia um pouco os consumos, porque é nesses contextos que geralmente estes acontecem.
Mas isso em drogas ditas mais ‘sociais’. E nas drogas mais “pesadas”, como a cocaína fumada, ou crack, e a heroína?
Vimos que, no início da pandemia, num grupo de países em que se inclui Portugal, houve sinais de que a heroína não estava tão disponível no mercado. Houve até uma inversão nos consumos daqueles que utilizam drogas de forma mais problemática para o consumo de medicamentos, como de benzodiazepinas (um fármaco psicotrópico). Mas depois, rapidamente, pela informação que tivémos, os mercados adaptaram-se, sofreram uma “uberização” e digitalização, em que rapidamente tanto os que vendem como os que consomem conseguiram distribuir as substâncias como antes faziam.
E como são essas novas formas de distribuição?
Utiliza-se as redes sociais, como o WhatsApp e o Telegram. Os consumidores contactam o dealer, muitas vezes o de antes, com quem se encontrariam na rua e combinam a entrega da substância.
Existirá um mundo livre de drogas?
Diria que não.
O que é que os governos, os países e as pessoas devem fazer para encarar o mundo tal como é?
É essencial manter-se informado. Quando a nós, é nossa função providenciar dados objetivos a tempo e horas, que permite aos políticos e a quem atua no terreno tomarem as melhores decisões.
Uma das “promessas” de há 20 anos, em Portugal, foi a criação de salas de consumo assistido. Nós sabemos que há países da Europa com uma rede de salas, como Espanha, Suíça, Holanda e Alemanha.
Portugal também já tem duas salas, no distrito de Lisboa: uma móvel e uma fixa que inaugurou em maio, na zona de Alcântara.
Sim. Mas no Porto, por exemplo, o concurso para a gestão da primeira inauguração ainda está a decorrer. Que importância é que elas têm nos países onde já existem?
São mais uma forma de intervenção num contexto global de prevenção e de serviços de tratamento. Temos de olhar sempre para a saúde pública e nesses países europeus onde já existem salas de consumo assistido há algum tempo, o que tem visto é que as práticas de consumo passaram a ser muito mais “saudáveis”, com menos partilha de seringas ou de material injetável, menos confusão na rua, dentro de bairros, para os vizinhos. É mais uma ferramenta que pode ser utilizada para aquela franja da população que poderá ter consumos mais problemáticos.
O que é que mais o preocupa agora, enquanto investigador?
Primeiro, a saúde de todos os que decidem consumir droga. Que tenham opção de tratamento, se for esse o caso. Estamos preocupados com questões de saúde mental por causa do uso de benzodeazepinas e padrões de consumo de várias substâncias ao mesmo tempo, que poderão aumentar os riscos de overdose e as consequências a nível da saúde. É algo a que temos de prestar atenção. Também não devemos esquecer que muitos dos serviços [de saúde] foram afetados, apesar de ter havido uma adaptação muito rápida dos profissionais. Logo aí, poderá haver um atraso nos dados para sabermos realmente o que está a acontecer. A pandemia foi um bom exemplo de como sistemas de informação rápidos e com boa comunicação de informação para a população são fundamentais.
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL