Veio com a família de Londres para o Algarve em julho do ano passado, por tempo indeterminado, numa altura em que a pandemia ditava orientações estritas de teletrabalho. O inglês Garth MacLeod diz hoje estar “muito feliz” com a sua rotina de trabalho, das 8h da manhã às 17h, como consultor da tecnológica SAP na Alemanha, a partir de ‘casa’ – um alojamento local na Meia Praia em Lagos, inserido num condomínio com piscina comum.
“Trabalhar aqui é uma vida fantástica, já conheci muita gente e fiz amigos, aprendi surf, quero praticar ténis outra vez, e também andar de bicicleta”, enumera o consultor britânico, que aos 47 anos está cheio de planos para “este novo e excitante tempo de vida” em Portugal. “Gosto muito deste estilo de vida, o tempo é bom, as pessoas são simpáticas e a comida é ótima, adoro o peixe grelhado, as cataplanas, e claro, os vinhos que são extraordinários”.
O caso de Garth MacLeod estende-se a muitos outros estrangeiros de nacionalidades diversas que, em tempos de covid, optaram por vir para Portugal por tempo prolongado mantendo-se em trabalho remoto, e recorrendo grande parte das vezes a plataformas como a Airbnb ou o Booking.
Para muitas unidades de alojamento local, os nómadas digitais foram uma ‘tábua de salvação’ nos tempos iniciais e mais duros da pandemia, em que o turismo praticamente regrediu a zero.
“Sentimos que continua a haver procura dos nómadas digitais, a pandemia despertou muito o interesse deste mercado de estadia longa, que pode ser um segmento importante para ajudar a combater a sazonalidade no período do inverno, época em que as ocupações são mais baixas”, considera Eduardo Miranda, presidente da Associação do Alojamento Local em Portugal (Alep).
“Temos pedidos de pessoas que querem ficar um mês ou dois em Lisboa, no Porto, na Madeira, mas também no Algarve ou mesmo no interior. A pandemia despertou muito este mercado de estadia longa, que pode ser importante no inverno, em que as ocupações são mais baixas”
“Anteriormente quase só eles davam ocupação aos alojamentos, mas agora é uma realidade difícil de quantificar porque já começam a misturar-se com os turistas tradicionais neste início de retoma que se sentiu em outubro, mesmo em Lisboa”, refere Eduardo Miranda, lembrando haver agora no alojamento local “um turismo de mais longa duração, pessoas que vêm por um mês ou mais com o intuito de viver a cidade ou o local”.
A procura dos trabalhadores ‘nómadas’ continua nesta fase a ter alguma expressão em diversas unidades de alojamento local. “Estamos a ter de momento pedidos de pessoas que querem ficar um mês ou dois, em Lisboa, no Porto, na Madeira, mas também no Algarve ou mesmo no interior do país”, adianta.
A pandemia também trouxe uma evolução no tipo de nómadas digitais: “Já não são só os típicos empreendedores de áreas tecnológicas que havia antes da covid, e estavam habituados a funcionar em teletrabalho, mas abrangem agora um perfil mais alargado de trabalhadores normais, pessoas que são freelance, ou que estão a fazer mestrados, e vêm para cá com as famílias por períodos longos”, faz notar o presidente da Alep.
DO ALOJAMENTO TEMPORÁRIO À DECISÃO DE FICAR A VIVER NO PAÍS
Muitos dos estrangeiros que vieram para Portugal e que se instalaram inicialmente em alojamento local estão agora à procura de casas para arrendar ou comprar, por terem decidido viver no país.
“A minha esperança é continuar a viver aqui”, garante Garth MacLeod, que decidiu trocar o alojamento local na Meia Praia por um arrendamento de maior duração, no mínimo por um período de três meses. “Tenho residência em Portugal, que consegui antes do Brexit, e no futuro poderei vir a comprar casa, só que em Lagos está tudo muito caro”, refere.
O consultor tecnológico britânico está na expectativa de saber se o seu escritório irá decidir o regresso ao trabalho presencial, e se for esse o caso está disposto a perder o contrato para continuar a viver no Algarve.
“Se perder o contrato e não encontrar logo outra possibilidade, tenho dinheiro suficiente para ficar sem trabalhar algum tempo”, assegura Garth McLeod, a quem não faltam ideias de trabalho empreendedor no país que considera ser “uma boa oportunidade de recomeço de vida”. “Uma das possibilidades é lançar um projeto na área de criptomoedas, percebi que em Portugal não há taxas de tributação”, exemplifica.
A “SALTAR DE AIRBNB EM AIRBNB” HÁ QUASE UM ANO
Há cerca de um ano, também a holandesa Rose Hess e o brasileiro Fellyph Cintra vieram para Portugal com o objetivo de trabalhar remotamente, numa altura em que a mensagem principal da pandemia era “fique em casa”. Ambos estavam a trabalhar em Dublin para empresas tecnológicas há cinco anos, quando veio a pandemia que virou tudo de pernas para o ar.
“Eu trabalhava para o LinkedIn como estratega de média, e adorava o meu trabalho, mas a nossa equipa acabou por ser dissolvida durante a pandemia”, conta Rose Hess, lembrando que já há muito tempo “tinha a ideia de vir viver para Portugal” e a covid “deu o empurrão final” para esta decisão – que diz estar associada a “mais espaço para estar ao livre e viver a vida”.
Rose e Fellyph começaram por ir para o Porto, e há nove meses mudaram-se para o Algarve. “Andámos a ‘saltar’ de Airbnb em Airbnb de mês a mês, até que recentemente encontrarmos um bom apartamento em Lagos, onde agora vivemos e trabalhamos”.
Em Portugal, Rose Hess e Fellyph Cintra abriram-se a novas oportunidades em trabalho remoto, além de desenvolverem outros projetos criativos e “de paixão”, estando também a aprender português. Fellyph trabalha agora à distância para a Google, como gestor de uma comunidade que promove um ecossistema de respeito social, e Rose criou a sua própria empresa produtora de vídeo, a Entrepreneur in Flipflops, que cria conteúdos e promove treinos sobre branding no Linkedin. “Agora trabalho remotamente para mim”, resume a holandesa.
Da nova casa em Lagos, Rose e Fellyph fazem um direto diário na internet, o CoffeebreakLive, “que conta histórias de gamechangers, pessoas que decidiram correr o risco de tomar uma direção diferente durante a pandemia, quando tudo estava fechado, e olhar outras formas de viver a vida”, descreve a holandesa, que também está envolvida em programas de treino específico para estrangeiros que estão no Algarve em trabalho remoto, juntamente com a Lagos Digital Nomads.
“Portugal está a ser muito escolhido pelos nómadas desde o início da pandemia, e sobretudo o Algarve, onde o tempo é muito bom, dá para ir à praia, fazer surf ou outras atividades de natureza. Só o facto de poderem ver o céu azul todos os dias é muito importante para esta malta”, refere Joana Glória, que em agosto do ano passado criou o grupo Lagos Digital Nomads no Facebook, com o objetivo de promover um espaço de networking entre a nova e crescente comunidade de estrangeiros em teletrabalho – que podem incluir passeios de barco, workshops ou outras atividades.
Em janeiro, Joana Glória prepara-se para lançar um portal “com toda a informação que os nómadas digitais precisam de saber quando estão em Lagos”, desde cafés onde possam trabalhar até alojamentos ou espaços de co-living.
Sendo uma comunidade dinâmica e em número sempre variável, é difícil quantificar os trabalhadores nómadas de momento na cidade algarvia. O grupo Lagos Digital Nomads no Facebook tem 3500 pessoas inscritas, e em outubro os encontros reuniam semanalmente cerca de 70 pessoas.
“Não faço ideia de quantos nómadas estão cá, mas vejo muita gente na cidade nesta altura com esse perfil. E esta também é uma forma extraordinária de combater a sazonalidade que sentimos muito aqui no Algarve”, faz notar Joana Glória. “Acredito que quanto mais a pandemia se prolongar, mais nómadas teremos no Algarve, isto já se tornou uma moda”.
ALOJAMENTOS TIVERAM DE SE ADAPTAR À NOVA PROCURA DOS NÓMADAS, CRIANDO ESPAÇOS DE TRABALHO
O alojamento local tem conseguido dar resposta a este movimento de estrangeiros em teletrabalho em Portugal que se tornou forte com a pandemia, segundo frisa o presidente da Alep.
“No fundo, são residentes temporários que querem uma casa com instalações onde possam trabalhar ou estar com a família, equipamentos para cozinhar mais em casa, e o alojamento local aqui é perfeito”, sublinha Eduardo Miranda, destacando ser a prova de que o sector “não serve só o turismo tradicional ou de curta duração, e está a ir de encontro a novos perfis de procura”.
Mas os alojamentos também tiveram de fazer algumas adaptações nos seus espaços para acolher estes hóspedes, que se tornaram nos seus melhores clientes, além de criarem condições e facilidades para estadas prolongadas.
“A maior parte dos alojamentos não tinham, por exemplo, uma mesa ou uma cadeira, e tiveram de criar um pequeno espaço de trabalho. Esse público-alvo exige alguma adaptação da oferta e são ajustes que compensam porque é um mercado que existe durante o ano inteiro”, exemplifica Eduardo Miranda.
Um dos principais obstáculos identificados foi a falta de fibra ótica nos centros históricos das cidades ou em zonas do interior, que também são procuradas por trabalhadores nómadas que “querem estar em sítios isolados e em contacto com a natureza”.
“O acesso a Internet rápida é fundamental para este perfil de trabalhadores, e começa a haver operadores que estão a alargar este serviço nos centros históricos”, refere o responsável da associação de alojamento local.
Os nómadas digitais “estão a ser um complemento muito interessante”, mas “não é uma solução para todos” num sector que foi fortemente abalado pela pandemia, sublinha Eduardo Miranda. Apesar de se sentirem alguns sinais de retoma,”neste momento, a maior parte dos operadores estão fragilizados financeiramente”, frisa.
“Com o verão a situação melhorou, mas não foi suficiente para criar reservas aos operadores, e este inverno ainda vai ser bastante duro do ponto de vista financeiro até conseguirmos chegar à Páscoa”, destaca Eduardo Miranda. Um golpe recente para o sector, detalha, veio com a proposta do PS em suspender novos registos de alojamento local em toda a cidade de Lisboa por um período de seis meses, extensível até que entre em vigor um novo regulamento.
A Alep já reagiu, lamentando que “o alojamento local seja usado mais uma vez como arma de arremesso num jogo de disputa política local”, numa “proposta de última hora com fins eleitorais”. E enfatizou que esta proposta “surge num momento em que o alojamento local registou, pela primeira vez na história, uma diminuição do número total de registos em Lisboa, tanto em 2020 como em 2021” – “nas plataformas online como a Airbnb, a oferta real ativa reduziu-se em mais de 2000 alojamentos desde finais de 2019″.
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL