Na manchete da anterior edição do Postal, pode ler-se: “Empresários da noite de Faro com futuro incerto”. Com eles, como com todos os outros trabalhadores das mais diversas áreas que se viram afectados devido à pandemia, está a nossa solidariedade. Existe por parte destes empresários um esforço criativo de adaptação às restrições de distanciamento exigidas por motivos de saúde pública, mas uma coisa é garantida como certa: “este ano não há pistas de dança”. Se algum dia alguém me dissesse que o Algarve ia estar sem pistas de dança em pleno verão, eu jamais acreditaria. De facto, neste momento, a realidade ultrapassa a ficção!
O imaginário de umas férias no Algarve contemplava até aqui, não apenas os maravilhosos banhos de mar e de sol, a gastronomia farta de bom peixe fresco e marisco, mas também a movimentada noite algarvia com os seus bares e discotecas. Os concertos de verão promovidos pelas autarquias, gratuitos e ao ar livre, tornavam-se também locais de dança. Os corpos morenos do sol, provavelmente mais desinibidos devido à ingestão de alguma outra bebida espirituosa, movimentavam-se ao ritmo da música, num ambiente propício ao desenvolvimento do erotismo. É bem conhecido o termoamores de verão. Este ano, o distanciamento social não promove o conhecimento de novas pessoas, a noite está morta, não há onde ir dançar depois de jantar…
Porém, as praias sem as tendas de discotecas que costumavam construir-se para este efeito, as cidades sem o barulho e as luzes artificiais características dos concertos, deixam que a natureza se mostre como há muito tempo estava impedida de fazer. O céu estrelado exibe todo o seu esplendor, a lua ilumina a calmaria das águas quentes, tão convidativas a banhos nocturnos. Os elementos da natureza chamam por nós, e talvez uma nova dança surja, não provocada pelos excessos do álcool ou pelas urgências da carne, não pela batida massacrante tão típica das discotecas, mas sim pelo próprio ritmo do cosmos que agora conseguimos sentir.
Vive-se um verão digno de Isadora Duncan, diria eu…
Nascida em São Francisco a 26 de Maio de 1877 esta mulher apaixonada pela vida e pela natureza, revolucionou o mundo da dança criando aquilo a que se veio a chamar Nova Dança contemporânea. O brilho das suas ideias e a genialidade das suas danças provocou a admiração de grandes nomes dos mais variados quadrantes artísticos, nomeadamente: Rodin, Craig, Stanislavski, Fokine ou Esenin.
O pai de Isadora separou-se da sua mãe logo após o seu nascimento. Mary Duncan dava aulas de piano ao domicílioe tricotava camisolas para vender. Mary não dispunha nem de tempo para se dedicar aos filhos nem de meios para pagar a alguém que a ajudasse. Maurice Lever, biógrafo de Isadora, num volume publicado pela Editorial Inquérito, considera que esta foi uma “divina imprevidência” pois deixou os seus filhos livres para poderem seguir as suas vocações, tendo a miséria proporcionado “um luxo que as crianças ricas desconhecem: a independência, a vida selvagem.”
Isadora Duncan considerava andar em pontas anti-natural
Ainda muito pequena Isadora Duncan sabia o que queria ser quando fosse grande: bailarina! Respondia sem hesitações a quem quer que fosse que lho perguntasse. Contudo, quando a mãe, aconselhada por uma vizinha, a inscreveu numas aulas de ballet Isadora detestou! Considerava andar em pontas anti-natural, e muito estúpidos aqueles movimentos característicos do vocabulário balético: entre-chats, jetés, fouttés, passe-pieds, balancés, tortillés… Em oposição ao espartilhamento do ballet clássico, Isadora encontra o seu lema artístico em Terpsícore, musa da música e da dança na mitologia Grega: “a arte é, antes de mais nada, um corpo liberto.”
Se todos os dias, às 3 horas da tarde o filósofo alemão Emanuel Kant saía de casa para o seu passeio higiénico diário, com uma pontualidade tal que se poderiam acertar os relógios por ele, também às 3 horas da tarde tocava a campainha anunciando o fim das aulas para Isadora, o que para ela significava o fim da prisão. Sem supervisão adulta, a pequena bailarina corria imediatamente para a praia e por lá ficava até ao cair da noite. Eis o que fazia Isadora, nas palavras do seu biógrafo:
“Sozinha, face ao oceano, deixa-se lentamente submergir pela irresistível pulsão que percorre os seus membros. A cabeça atirada para trás, o peito repleto de vento, eleva-se sobre os pés descalços, como se uma força exterior a conduzisse na perseguição de um sonho. Pulando pela praia fora, acompanha instintivamente a sinfonia agitada do mar. No balançar das pernas e dos braços, no arqueado das ancas, na branda ondulação dos seus rins, reconhece uma invisível harmonia com o movimento das vagas. O grande ritmo do universo determina simultaneamente a turbulenta vida do oceano e a sua delicada dança. Isadora entrega-se a ela com uma espécie de júbilo selvagem. As mãos estendidas em forma de concha, recolhem os últimos raios de sol e, com um gesto amplo, derrama-os sobre si, pudica e casta como uma jovem bacante praticando um sacrifício no altar de Dionísio. O olhar imerso no horizonte embriaga-se com todo esse vasto espaço em seu redor, com as nuvens que correm rápidas no céu, com o cheiro dos sargaços, com a tépida transpiração das suas coxas, com a agitação do sangue que sente bater nas têmporas, com o ágil arrebatamento do seu corpo, com o peso da sua cabeleira encharcada de suor. É o delírio de uma criança livre, estonteada com a sua própria embriaguez, recusando todo o cansaço, fazendo vibrar a corda do desejo até à sua nota mais alta, imediatamente antes de a alma se despedaçar… Ritual de prazer… Transbordar de felicidade…” (Ibid.).
Neste verão podemos dançar como Isadora
Neste verão podemos dançar como Isadora, descobrir os ritmos cósmicos que criam o ritmo das ondas, a sucessão dos dias e das noites, o girar do mundo sob os nossos pés. Esta é a origem da dança, perceber que o corpo está sempre a cair, graças à gravidade, e que manter-se de pé é um desafio que temos de superar em tenra idade. Como diz o filósofo José Gil no seu livro Movimento Total, publicado pela Relógio D’Água: “No começo era o movimento porque o começo era o homem de pé na Terra. Erguera-se sobre os dois pés oscilando, visando o equilíbrio. O corpo não era mais do que um campo de forças atravessado por mil correntes, tensões, movimentos. Buscava um ponto de apoio. Uma espécie de parapeito contra esse tumulto que abalava os seus ossos e a sua carne”.
Quer isto de dizer que, constitutivamente, somos já bailarinos. A dança faz parte da nossa essência. Não qualquer dança, mas esta dança que Isadora Duncan reinventa no início do séc. XX, inspirada nas esculturas gregas, nas ondas do oceano e demais ritmos da natureza. Este verão, temos óptimas condições para nos submergirmos também nós nessa dança dos elementos, longe da artificialidade, perto da natureza, podemos redescobrir o fluir natural que as nossas entranhas encerram. Dancemos pois!
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de agosto)