David Machado nasceu em Lisboa em 1978 e a sua obra tem sido publicada pela Dom Quixote.
O seu Índice Médio da Felicidade, já apresentado no Cultura.Sul, foi adaptado ao grande ecrã, com realização de Joaquim Leitão e participação do autor na elaboração do guião. O livro foi vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura, prémio aliás que abriu portas ao autor, pois levou a vendas de direitos para uma dezena de países, tradução dos seus livros anteriores, a premiação da edição italiana e a participação de David Machado em vários festivais e feiras do livro.
Um livro que levou cerca de três anos a ser escrito, conforme se sente na tessitura narrativa, mais burilada, e a procura de uma originalidade no estilo e na forma como tenta cruzar três narrativas diferentes, sem propriamente simplificar a história, cingindo-as a um enredo único. Na segunda parte do livro existe mesmo um jogo literário mais evidenciado, na forma como o autor inova e procura reflectir sobre o processo da própria escrita. Processo esse que «Custa tanto» conforme as suas personagens referem.
O autor inova ainda, particularmente na primeira parte, e naquela que é a narrativa mais forte e que mais marcas deixará certamente no leitor, ao adoptar uma voz narrativa feminina, pois as suas personagens anteriores são maioritariamente masculinas. Apesar de inicialmente a voz da personagem de Júlia nos parecer encaminhar para uma história de violência, pelo modo como deixa perceber, gradualmente e sempre de forma ambígua, como esta adolescente terá sido vítima de maus tratos ou de abuso há cerca de um ano, sem nunca se deter propriamente nesse episódio, para que o leitor o capte e veja na sua totalidade, esta jovem irá revelar como se convive com uma dor profunda, que se tenta camuflar na esperança que adormeça. A história desta adolescente de dezanove anos, emancipada, magoada, que sente repúdio de qualquer contacto físico ao mesmo tempo que, paradoxalmente, sente as lágrimas virem-lhe aos olhos assim que lhe tocam, é um desvelar de como se vive o trauma e a dor, a memória de um acto profundamente doloroso, físico ou emocional, que deixa marcas duradouras e impressões indeléveis, debaixo da pele. Pode até parecer um cliché a forma como uma das constantes da vida de Júlia, mesmo dentro do casulo do seu quarto, ser o barulho constante das discussões acesas do casal vizinho, como um ruído de fundo à história de Júlia, conforme lida com a depressão e o trauma do que lhe aconteceu, e da forma como isso a impele a querer salvar uma menina de cerca de cinco anos, a filha do casal do lado, cujo som de desamor atravessa as paredes e atinge o âmago da dor que Júlia procura disfarçar.
Um livro tripartido
A primeira narrativa, intitulada «Júlia não está cá», cuja acção se passa em 1994 e é constituída por cerca de 117 páginas, não se lê de ânimo leve, e instaura uma atmosfera opressiva que, no final do livro, se redime um pouco, quando a voz narrativa é a de uma criança. Conforme Júlia agarra em Catarina, nas escadas do seu prédio, e foge com ela por Lisboa, num périplo subterrâneo moderno, entre estações de metro e discotecas, sentimos como é a própria personagem que está à deriva, enquanto tenta salvar ainda a sua infância, a sua inocência, a sua capacidade de (voltar a) confiar tão cegamente no mundo e nos homens e mulheres que o habitam como aquela criança que lhe estende os braços incondicionalmente e cujo corpinho encaixa tão perfeitamente no seu colo. É a história de um só dia na vida de Júlia e de Catarina, e que no entanto perdurará no tempo, com consequências que se repercutem nas histórias seguintes, mesmo que indirectamente.
Na segunda história, «Notas para um romance sobre uma rapariga que não suporta ser amada», saltamos para 2010. Numa narrativa com cerca de 90 páginas, cuja mancha gráfica é completamente diferente, de modo a fazer jus à designação genérica de «Notas», conheceremos Salomão, nome fictício que o escritor adopta para o seu narrador, isto é, para o eu que conta a sua própria história. Ao exercício de estilo e de estrutura narrativa que David Machado diz querer ter experimentado neste livro, acresce ainda esta técnica próxima da metaficção, em que o narrador, novamente na primeira pessoa, deixa perceber, aos poucos, e sempre de forma muito subtil, como se encontra encerrado em consequência de algum acto cometido. Ao mesmo tempo que pondera como narrar o que lhe aconteceu e que, saberemos no fim, o levou a ser preso, Salomão, esse alter ego do protagonista desta narrativa, vai colocando perguntas a si próprio, ou ao leitor?, de como melhor compor os eventos: «Ela terá na história o mesmo nome que na realidade? É uma questão difícil. Para mim, é importante ser-lhe absolutamente fiel e aos acontecimentos com ela relacionados ao longo de toda a narrativa. No entanto, escrever o seu nome, página após página, ao mesmo tempo que recordo tudo, poderá tornar o relato demasiado doloroso. Não tenho a certeza. Mas sei que nenhuma característica física, psicológica ou cronológica enche tanto de vida uma personagem como um nome.» (p. 123).
Mas nunca saberemos o nome dessa personagem feminina sobre quem Salomão fala. E se Júlia nunca fala muito sobre João Tiago, o ex-namorado, Salomão centra-se completamente nessa mulher sem nome que invade a sua casa e a sua vida, focada unicamente na sua escrita, e com um namorado aparentemente violento. Em simultâneo com o processo de Salomão pôr a nu a sua alma e o processo de escrita em que expõe os factos do que lhe ocorreu, ao mesmo tempo que ele convive com o seu próprio trauma, temos essa rapariga completamente empenhada na sua escrita, como se apenas sobrevivesse do próprio acto da escrita. Por nunca ter nome, o leitor pode sentir uma ambiguidade latente e depois crescente em relação a essa jovem por quem Salomão acaba por se apaixonar irremediavelmente, ao ponto de cegar e ver aquilo que ela o quer levar a ver, manipulando-o a vê-la como uma vítima até que ele próprio resulta numa vítima de um crime passional.
«Eram pouco mais de cem páginas sobre um dia na vida de uma rapariga chamada Júlia que, no ano anterior, foi agredida pelo namorado e que, desde então, quer viver o menos possível. Sentir alguma coisa dói-lhe demasiado. Olhar o Mundo obriga a um envolvimento que ela receia. A sua confiança nas palavras e nos gestos de outras pessoas foi devastada. Porém, neste dia em particular, Júlia conhece uma criança que precisa de ajuda e salvar essa criança torna-se uma prioridade.» (p. 148)
Se de início pode haver alguma hesitação entre ler esta personagem feminina como sendo Júlia, perceberemos como na verdade essa criança que Júlia em tempos salvou é afinal Catarina, que se tornou uma espécie de femme fatale, perita em manipular os homens.
A perda da inocência
Na terceira e última parte, «As cassetes do Manuel», uma criança que percebemos ser o filho de Júlia, que aliás já tinha surgido, mudo e muito mais novo, no final da segunda parte, este jovem grava em 2017 umas cassetes com um Walkman, onde narra a sua própria história, entre o ontem e o agora, sentindo-se como houve um momento de cisão em que esta criança se tornou homem aos 11 anos.
Pouco mais de vinte anos depois, o tom da narrativa adensa-se novamente, conforme Manuel nos revela como a mãe passou de vítima a opressora, ao tentar salvar mulheres vítimas de violência doméstica mas não é capaz de compreender como a sobreprotecção que exerce sobre o seu filho, e o isolamento a que o destinou, vivendo no meio do nada (Manuel tem inclusivamente ensino doméstico), podem ser tão ou mais nocivos do que deixá-lo contactar com o mundo real por sua conta e risco, para crescer com as suas próprias feridas.
Fica a tristeza, quem sabe pouco fictícia, de Júlia não ter sido capaz de sobreviver ao seu trauma, ao mesmo tempo que se deixa uma nota de esperança ao encerrar a narrativa pela voz de uma criança mesmo que aparentemente ele já tenha crescido muito e de repente.
Debaixo da Pele é um livro tripartido que conta nas suas várias partes uma história idêntica no seu cerne, a da perda da inocência e do mal que podemos infringir aos outros. Mal que é capaz de deixar marcas muito mais profundas que a epiderme, muitas vezes impossíveis de sarar, e que podem até repercutir-se nos que nos rodeiam. Mas é também a forma como lidamos com as marcas que nos deixam e aquilo que decidimos fazer em resposta que nos impele ou nos derrota.
(Artigo publicado na edição papel do Caderno Cultura.Sul de Dezembro)