Nascido em Olhão em 1954, Fernando Cabrita é advogado de profissão. A escrita, nomeadamente a poesia é uma das suas maiores paixões. Tem colaboração dispersa em jornais e revistas e integra várias colectâneas de poesia. Edita desde 1980, e nesse ano, com ‘Os Amantes Em Silêncio’ ganhou o primeiro de vários prémios que tem obtido desde então. Os seus mais recentes livros são: – Le Deuxième Livre de la Maison – Poesia – Marrakesh (bilingue português-francês), Abril 2017; – El Sermón de La Montaña y Oda de Viaje – Poesia – Ilhas Canárias, 2017; e Três Odes – Poesia – Portugal, 2017. É o organizador do Festival Internacional Poesia a Sul, Olhão, que vai entrar na sua 4ª edição anual.
Como é o teu quotidiano com a poesia da tua vida? Da tua poesia?
Procuro – às vezes com dificuldade – fazer conviver o advogado com o escritor. Manter a vida profissional, que é densa, sem perder a capacidade de aprofundar a minha actividade poética e essencialmente as leituras de poesia. Ler, como forma essencial de poder escrever. Cada vez que oiço poetas a declarar que não lêem mais do que os seus contemporâneos, que não lêem escritores ”passados”, dá-me arrepios. E acho-os mais dignos de pena do que de irritação.
Como acontece a poesia nos teus dias, ou como a fazes acontecer?
Escrevo sem agenda prévia. Ou a poesia surge e impõe-se-me, ou não ando aí pelos cantos à procura dela, à cata de “inspirações”. Não escolho horas nem locais. Na verdade, sinto que quando a poesia surge, é ela que escolhe. O que me cabe é estar aberto, intelectual e sentimentalmente, para não me opor a isso; nem querer estabelecer horários ou rituais para que se faça poesia a horas certas, como uma obrigação, ou uma agenda, ou um Borda d’Água.
Menciona alguns dos teus livros/poemas preferidos.
Dois livros: Uivo, de Allen Ginsberg; A Noção do Poema, de Nuno Júdice. Depois há poemas: Captain, o my Captain, de Walt Whitman, ou Tabacaria, de Álvaro de Campos. E outros, claro.
Autores que gostas ou que possas dizer te inspiram a escrever?
Um poema no meu livro Le Deuxiéme Livre de La Maison, que em Abril passado se publicou em Marraquexe e que se intitula Salutation à Mes Maitres (Saudação aos meus Mestres) presta homenagem aos que seguramente me influenciaram e vêm influenciando na escrita poética, nomeando-os e agradecendo-lhes essa influência. Éntendo este poema como uma acto de justiça e de reconhecimento porque é a expressão poética daquilo que desde sempre refiro como darwinismo literário, ou seja, essa noção de que nós escrevemos aos ombros de quantos nos antecederam, bebendo e fruindo dessas suas escritas e da larga influência que elas deixaram em nós. E se alguma originalidade temos na nossa obra ou naquilo que escrevemos, ela está em sermos capazes de pegar na lição desses mestres, nos ecos das suas vozes e, sobre elas, acrescentar de algum modo uma pequenina parcela nossa, uma pequenina sonoridade da nossa própria voz. É um diálogo com os que nos antecederam, em que os ouvimos e queremos, com eles e junto a eles, fazer-nos ouvir. É assim toda a literatura.
Os nomes estão lá, no poema….
Caneta e papel avulso, máquina de escrever, que material usas para escrever, como é o processo material da tua escrita?
Como escrevo sem plano prévio e sem hora marcada, não posso dar-me ao luxo de escolher o meio material para essa prática. É o que estiver à mão no momento em que sinta a necessidade (e tenha a oportunidade e possibilidade, que nem sempre são contemporâneas da necessidade) de escrever. Por isso tenho textos em vários cadernos, ou em folhas soltas, escritos manualmente, também sem qualquer caneta específica. É a que estiver disponível e me saia da mochila quando a busco. E também os tenho em ficheiros de computador, se acaso estou ao computador quando surge a elaboração do poema.
Vícios, manias e segredos contáveis relacionados com a tua escrita…
Não sei se serei a melhor pessoa para falar de vícios ou manias na minha escrita. Penso que cabe a quem leia detectá-los, se os houver, e expô-los. É esse, aliás, um dos papéis do leitor, figura que tantos escritores alegadamente desprezam ao declarar que não escrevem para ninguém, que escrevem para si próprios ou para o futuro ou lá para o que quer que seja, sob a alegação de que os leitores actuais os não merecem. Ora, a poesia faz-se também para os leitores, como a outra face do processo criativo.
Que livros de poesia estás a ler/leste recentemente?
Creio-me um leitor compulsivo de poesia. Agora estou a reler um livro, de um só poema, de Antonio Orihuela, editado em 2007 e intitulado Que el Fuego Recuerde Nuestros Nombres. É um longo e belo texto poético, claramente influenciado na temática, na forma e na filosofia pelos poetas da beat generation, É Neal Cassidy, aliás, quem surge na capa ao volante do seu autocarro. Estou simultaneamente a ler diversos autores arábigo-andaluzes que estão compendiados por Emílio Garcia Goméz desde 1939; e os que mais recentemente constam na antologia Poesía Andalusí, coligida por Manuel Francisco Reina.
Queres falar sobre a tua recente coordenação dos encontros Poesia A Sul em Olhão?
O Poesia a Sul foi uma experiência bem sucedida, até agora. Obviamente que só o apoio que desde sempre tem sido dado pelo Município de Olhão e pelo Presidente António Pina permite esse sucesso que, espero, continue. Em três anos conseguimos atingir um patamar de reconhecimento não só nacional, como era a nossa primeira aposta. Tornámo-nos parceiros de outros Festivais Internacionais de Poesia em Marrocos e Espanha, editámos os Cadernos de Poesia onde colaboram escritores de todo o mundo, o nome de Olhão e do Poesia a Sul aparecem referidos em diversa imprensa, rádios, blogs, páginas literárias e programas na Irlanda, no México, no Porto Rico, na França, no Chile, no Vietnam, na Turquia e em outros mais países. Sei que há gente que entende que os Festivais de Poesia não têm qualquer utilidade; que são como que uma feira de vaidades ou uns encontros de amigos. Na verdade, a poesia faz-se na intimidade de cada um, no silêncio de cada autor recolhido em si mesmo. Mas a divulgação da poesia faz-se publicamente, em livros, em jornais, em letras de canções, em recitais, em festivais, em encontros literários. E os Festivais de Poesia cumprem objectivamente essa sua missão de divulgar o trabalho criativo dos autores, de os trazer ao público, de abrir portas ao conhecimento, à experiência, à fraternidade. Pela poesia – e pelos encontros de poetas- se constroem pontes onde muitas outras actividades humanas tantas vezes apenas constroem muros e fomentam rivalidades e ódios. O Poesia a Sul tem procurado também ter esse papel; e demonstrar internacionalmente Olhão como um centro de irmandade poética onde escritores do mundo se encontram e convivem.
Poema de um livro ainda em fase de escrita. E sem título.
À flor do junco sucumbíamos.
Naquele inverno que passou confessaste-me a tua dor.
Subimos a uma montanha onde não havia neve. Nada agitava a flor do junco a rosa.
À flor das vinhas sussurrávamos. O quê não lembro.
Recordações fragmentos síncopes.
E essas coisas que dizíamos eram belas e antigas.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Janeiro)