À primeira vista, Património e Música parece-nos um título bem sugestivo para um artigo. Ao analisar mais de perto deparamo-nos com um questão: E música não é património? Claro que é! Há bem pouco tempo o Cante Alentejano foi considerado pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade. Estamos habituados a pensar em património associando-o aos vestígios materiais de cultura, isto é, a coisas palpáveis, visíveis, tangíveis. Na grande maioria dos casos, até as próprias línguas – som falado – têm um corpus consubstanciado nas gramáticas, nos dicionários, na literatura. Com a Música a relação é bem diferente. É certo que há cerca de 1.200 anos, com o aparecimento da escrita musical que hoje utilizamos, começou a constituir-se um corpus musical que nos nossos dias é inestimável, por ser gigantesco. É certo que antes disso os povos da Antiguidade Clássica e pré-clássica tinham formas de escrever música que infelizmente ainda não compreendemos na totalidade. É também certo que desde tempos remotos temos indícios de que o Homem sempre utilizou a música. A Música corre-nos nas veias, – pode dizer-se.
O problema é que a música não se vê. Podemos fazer uma reprodução do que se vê, mas é-nos mais difícil representar os outros sentidos. É fácil pintar uma paisagem ou desenhar uma casa, mas parece complicado desenhar o som. Não tem corpo como uma estátua ou como um templo. Ainda assim é, nas suas expressões, desde as mais populares às mais eruditas, património!
Deste património devem apoderar-se os povos. Que cada um usufrua do seu património é, não só um direito, mas também, e sobretudo, um dever. Temos o dever de tomar nas nossas mãos o património colectivo sob variadíssimas perspectivas. Devemos conservá-lo, admirá-lo, interrogá-lo e recriá-lo. Estas e outras atitudes positivas em relação ao legado dos nossos antepassados, permitem-nos recriar-nos, e reforçar a nossa identidade, desenvolvendo uma panóplia de actividades que, se a imaginação ajudar, nos pode abrir horizontes vastíssimos.
Foi partindo destes pressupostos que propus ao grupo que dirijo concretizar uma acção cultural conjunta, dentro do nosso concelho.
Um grupo coral não tem, à partida, grande relação com um monumento de há cerca de cinco mil anos atrás. A dança, também não parece caber nesta ideia. Mas cabem: tanto a dança, como a música, como a luz.
O monumento megalítico de Alcalar consiste num túmulo da pré-história, formado por uma tholos: uma abóbada de pedra solta, rodeada por um murete de contenção e com uma abertura de um dos lados para uma cripta funerária. À frente dessa abertura/corredor, parece ter havido um muro atrás do qual se desenvolveriam, possivelmente, as cerimónias sagradas, vedadas à vista do povo que se juntaria no espaço fronteiro a esse muro.
O Grupo Coral Adágio estava na altura a recolocar no seu repertório um requiem, – Requiem, de Gabriel Fauré peça de finais do século XIX e que consiste em composições musicais que acompanham o cerimonial religioso para um defunto.
A passagem da vida à morte é um movimento que, embora incompreensível por nós, faz parte da nossa condição de humanos. Nada melhor para exprimir movimento que a dança.
A luz e as trevas ou a vida e a morte, são dualidades que a nenhum de nós escapam. A luz, e a sua manipulação com as técnicas de que hoje dispomos, pode oferecer-nos magníficos espectáculos de raras contemplações.
A acrescentar a todas estas ideias, junta-se o facto de que, cada vez mais, necessitamos de actividades culturais que extravasem o grupo onde são desenvolvidas e se cruzem, de forma multidisciplinar, estimulando-se mutuamente e obrigando a um convívio desejável que cria novas sinergias.
O espectáculo que se desenvolveu na noite de 27 de Maio, em Alcalar, quis proporcionar, a quem assistiu, uma viagem de cinco mil anos. O monumento megalítico, a luz, a dança e o som abarcaram um arco temporal de cinco mil anos. E levanta, nos espíritos mais perspicazes e atentos, questões pertinentes. A Arte não deve servir só para contemplar. Tem de recriar, interrogar, desinquietar ou desassossegar, como diz o poeta.
O que é a memória? Quanto tempo dura? Que forma é esta de estar? Que relação temos com o Tempo? com o espaço? Quem sou eu? Porque não? Por quanto tempo levarei flores à campa dos meus antepassados? Há regras para isso? Há costumes? O que é o luto? Porquê? Para quê?
Não deverei levar flores aos meus antepassados de há cinco mil anos?
– Porquê? Nunca os conheci! dirão. Mas também Camões eu nunca conheci e, ainda assim, o homenageio depositando coroas de flores na base da sua estátua, para comemorar o hipotético dia da sua morte! Também Fauré eu nunca conheci e no entanto canto a sua música.
Mas Camões escreveu obras fundamentais da nossa cultura. Fauré é reconhecido internacionalmente pela qualidade da sua música. E os construtores do monumento? E os seus arquitectos? e quem lá foi sepultado? Que Homens foram? Que feitos praticaram? Porque chegaram até nós desta forma, em forma de pedra?
Foi por tudo isto que propus a realização de um concerto junto a um monumento megalítico com cinco mil anos, executando obras de Fauré com cerca de 150 anos; foi por tudo isto que incorporei o movimento da dança, tão bem expresso pelas seis alunas da professora de dança Nilsen Jorge. Foi esta a razão da utilização das luzes e das actuais tecnologias.
Resta-nos dar relevo a todos nós, Homens de hoje, que participámos no evento cantando, dançando, iluminando, tocando e assistindo…
Fica-nos a memória. Impõe-se agora pensar, reflectir, perpetuar.
Se isto aconteceu, a nossa apropriação de um monumento, criou arte que cumpriu a sua função: Fruir e fazer pensar. E claro, o desejo de mais.
(Artigo publicado na edição papel do Caderno Cultura.Sul de Dezembro)