D. João II ficou na história como o Príncipe Perfeito.
A nível interno teve mãos de ferro e lançou as bases de um estado moderno. Centralizou o poder, confiscando bens e retirando privilégios à alta nobreza feudal.
“Não quero ser rei apenas das estradas de Portugal”, terá dito quando iniciou um processo de reformas que pôs fim à medievalização e fragmentação do poder. E a quem se lhe opôs, não hesitou em aplicar a força da lei e, em alguns casos, a lei da força do seu próprio braço.
Foi assim com o todo poderoso duque de Bragança e com D. Diogo, duque de Viseu, irmão de sua mulher, rainha Dª Leonor. Ambos, alegadamente, implicados em conjuras de alta traição à pátria, em conluio com Castela, visando a sua eliminação física.
Há quem não deixe de estabelecer essas ligações familiares – e a forma como reagiu com firmeza às conspirações lideradas pelas grande casas senhoriais – à sua própria morte.
Se a rainha Dª Leonor e sua mãe, Dª Beatriz, não escapam à suspeição, de terem sido as mãos por detrás do arbusto, o que não parece merecer hoje grandes reparos é que D. João II morreu envenenado. Por doses pequenas e graduais de ácido arsénico.
Reinou durante 14 anos e dois meses.
Nos últimos quatro anos, os sinais de envenamento eram visíveis e recorrentes: vómitos, diarreias, desmaios, mãos e pés inchados e enegrecidos. E, sobretudo, o efeito típico do veneno da época: o corpo continuava intacto e incorruptível muitos anos após a sua morte!
Já em 1492 – segundo o cronista do reino, Garcia de Resende – estando em Lisboa, “vieram-lhe grandes acidentes e desmaios, estando mui mal em casa da rainha”.
E ele, que até aos 37 anos só bebia água, começou, a conselho médico, a tomar vinho com “grande temperança”, desde que os físicos começaram a associar os sinais de crise, à agua que ingeria da Fonte Coberta, em Évora. E a prova real foram as mortes do copeiro mor do palácio e outros dois serviçais da corte que beberam na mesma fonte!
Foram longos anos de degradação física progressiva, com recaídas cada vez mais frequentes, mas que nunca lhe toldaram o pensamento e a acção.
D. João II era um homem de grande coragem física, perspicaz e determinado. Sabia bem o que pretendia: – Diogo Cão já atingira a foz do Zaire e Pêro da Covilhã seguira por terra para preparar localmente o caminho aos navegadores. Mais importante ainda: a sul, Bartolomeu Dias tinha encontrado a passagem para Índia.
Afinal o Índico não era um mar fechado! E o Atlântico sul era mar português! Porém, Colombo tinha chegado às Antilhas. E Tordesilhas estava ainda por assinar!
A morte, tão acidental como duvidosa, do seu filho, príncipe herdeiro D. Afonso, em 1491, trazia-lhe o problema acrescido da sucessão da coroa. O rei tudo fez junto do papa para legitimar o filho bastardo, D. Jorge, mas o lóbi de castela, da mulher e da sogra, venceram este braço de ferro que poderia ter custado uma guerra civil e deitado tudo a perder.
Castela espreitava um qualquer descuido para intervir, mas o rei português teve a sabedoria de saber esperar porque, como ele costumava dizer, “há tempos de falcão e tempos de coruja”. Com grande visão de estado, assegurou a paz na terra e a liberdade no mar.
Em Julho de 1495 – escreve o cronista – “encontrando-se em Alcáçovas, vê a sua situação piorar e perde o gosto de comer, não tendo prazer em coisa alguma”. E perante este quadro, em finais de Setembro, os médicos decidem recomendar ao rei que fosse para tratamento nas caldas de Monchique, no Algarve.
Aqui, sentiu-se “mui contente”. Foi à caça e saiu divertido. Contudo, dias depois, sobrevieram-lhe fortes dores de estômago que o deixaram “agastado e triste”. Muito fraco, dirigiu-se a cavalo, instalando-se em casa de Álvaro de Ataíde, alcaide mor de Alvôr. O filho, D. Jorge, que o acampanhava, foi mandado para casa de D. Martinho, senhor de Vila Nova de Portimão.
Desenganado pelos médicos, organizou, então, o cenário da sua morte. Recebeu a extrema unção, não sem antes pedir aos que o rodeavam que não o “agonizassem com os seus prantos”. Recebia pouca gente e só Garcia de Resende tinha “porta aberta” na sua antecâmara de morte.
No testamento, declara herdeiro da coroa, o duque de Beja, futuro D. Manuel I, que foi travado em Alcácer pelos partidários da mãe quando se dirigia para Alvôr, impedindo-o de acompanhar os últimos momentos do seu primo e cunhado.
Pediu ainda que lançassem o seu corpo na Sé de Silves e depois levassem os restos mortais para o mosteiro da Batalha. Quando o enterraram em Silves, usaram três alcofas de cal virgem para apressar a decomposição do corpo. Porém, quatro anos mais tarde, verificaram que as tábuas do ataúde estavam queimadas pela cal, mas o corpo “acharam-no todo inteiro, que se conhecia quando em vivo”.
Se o título de Príncipe Perfeito lhe foi atribuído por Lope da Vega, a maior demonstração de respeito pela personagem excepcional, que deixou uma marca indelével na história do mundo, foi dada por Isabel de Castela, a Católica. Informada da morte do rei português, desabafou:
“Es muerto el Hombre”!
…E Lisboa cobriu-se de luto por seis meses. Ele era o rei do povo. Que o chorou, condoídamente, como antes nunca havia acontecido.
Fontes: “Crónica da vida e feitos d’el rei D. João II”, de Garcia de Resende; Crónica d’el Rei D. João II”, de Rui de Pina; “D. João II”, de Luis Adão da Fonseca; “Itinerários d’el rei D. João II”, J. V. Serrão; outras.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de outubro)