‘A Filosofia, logo no seu começo, foi a ruptura do mistério’.
María Zambrano, A Metáfora do Coração
Se formos passear para os lados de Marim, entre pinheiros, caravanas e alguma gaivota mais afoita, encontraremos numa curva do caminho um edifício inaudito! Com quatro frentes orientadas aos pontos cardeais, em escadarias que representam cada uma delas um instrumento musical diferente, ergue-se o palacete modernista, hoje Ecoteca de Olhão. O chalé é quase tão desconhecido quanto o seu excelente dono. Como pode a Lusitânia ignorar João Lúcio Pousão Pereira (1880-1918), poeta olhanence de tão elevado estalão? António Cândido Franco lança algumas luzes sobre este desafortunado esquecimento: “A situação – invulgar num grupo em geral coeso e solidário – deve-se decerto ao afastamento físico do poeta dos centros onde a Renascença Portuguesa se manteve viva, exilado que sempre viveu na ponta sul do País, e ao seu precoce desaparecimento numa situação de calamidade pública, a pneumónica de 1918, que levou à dispersão do seu espólio, ao desinteresse quase generalizado pelo destino póstumo da sua obra e finalmente ao apagamento do seu rasto na sempre tão disputada República das Letras”.
João Lúcio faleceu precocemente mas deixou-nos quatro livros de uma riqueza e sensibilidade extremas: Descendo (1901), O Meu Algarve (1903), Na Asa do Sonho (1913) e Espalhando Fantasmas (póstumo 1921). Escassas homenagens lhe fizeram, entre elas destaco a do compositor Ivo Cruz que a João Lúcio dedicou Aguarelas nº 3: Canto de Luar. Hoje em dia peça obrigatória do exame de quinto grau de piano. Esperemos que assim continue, contribuindo para a memória deste talento que urge perdurar.
Para mim, João Lúcio não é apenas poeta, ele é também filósofo. Está nele bem expressa a vontade de saber: “Eu queria poder ver, mas ver com precisão,/ As coisas, e não só a superfície delas.” (Descendo) Tal como María Zambrano (1904-1991), João Lúcio decidiu escrever contra-corrente. Em plena modernidade, com a razão elevada ao seu máximo esplendor devido às suas virtudes de universalidade e transparência, num meio em que prevalecia a severa convicção de que apenas é passível de conhecimento aquilo que pode ser reduzido ao que se crê ser a sua essência – consciência e razão -, Zambrano e Lúcio erguem-se em paladinos das zonas sombrias de mistério e sentimento. “Pela escada que desce ao fundo mist’rioso das coisas/ de tudo aquilo que a vista não alcança/ (…) pela escada que vai para o – Desconhecido -,/ para tudo o que vive estranho ao nosso olhar: Para aquilo que não afecta o nosso ouvido,/ para tudo o que nós não podemos palpar: Por essa escada irei (…). Nesta treva sem fim do mundo mist’rioso, / Em que procuro achar também a claridade…”. (Descendo)
Também pouco ajudou à popularidade de João Lúcio a sua contemporaneidade com Pessoa (1888-1935), que tão modernamente dizia na voz do heterónimo Alberto Caeiro, como que respondendo ao poeta olhanense: “O mistério das coisas, onde está ele?/ Onde está ele que não aparece/ Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?/(…)Porque o único sentido oculto das coisas/ É elas não terem sentido oculto nenhum.” (O Guardador de Rebanhos,1925).
Costumando o olhar à treva do mistério,
Até que a treva seja uma luz para mim
João Lúcio, Descendo
O filósofo rege-se por um imperativo de claridade com que regula os seus esforços de conhecimento de todas as coisas. Descartes (1596-1650) estabeleceu-o no seu Discurso do Método ao determinar como critério de verdade a clareza e a distinção. Por seu lado Ortega y Gasset (1883-1955) afirma que a filosofia é “uma vontade de meio-dia, de uma claridade de sol a pino”.
Ao contrário da poesia, a filosofia nunca é obra de uma graça recebida ou um dom momentâneo, pelo contrário, é o resultado de um longo esforço racional que não se compadece com a escuridão inerente aos sentimentos que contêm em si uma centelha de mistério. A questão essencial não reside na imediatez, mas sim nesta escolha entre claridade e obscuridade. Se o que orienta a procura filosófica é a clareza e a distinção, então, não há lugar para horizontes de sombra, para os territórios obscuros onde o coração nos guia. Contudo, diz-nos Zambrano, somente nesses territórios mais carentes de luz, nessas zonas de penumbra, se poderá, talvez, aceder àquilo que verdadeiramente importa. O padecer quando se experimenta nos seus momentos mais álgidos, quando as entranhas se encontram em carne viva, torna-se indizível. E desta indizibilidade, deste silêncio, deste mistério, não se compadece a palavra que define, enuncia e declara, da reluzente filosofia. Em A Reforma do Entendimento Zambrano esboça este propósito de atender à especificidade do humano, em particular às suas zonas ocultas, ou territórios de sombra, bem como o método para levar a cabo este afazer, de acordo com o qual, a razão terá de assumir um dinamismo que lhe permita captar o fluir do tempo.
Se o pensamento apenas pode aceder ao que “é”, apenas pode pensar a actualidade, capta o ser mas deixa de fora o que ainda não é mas está em vias de ser, bem como aquilo que foi, ou ainda é mas está em vias de deixar de ser, enfim, despreza tudo o que está em meio caminho. E é coerente que assim seja uma vez que este reino da realidade sem ser não se unifica sob o princípio de não contradição. Este reino descontínuo e não mensurável não se deixa captar através da razão, estritamente. A luz do pensamento unifica quando ilumina, tornando visível não somente o objecto sobre o qual recai mas também toda uma rede de inter-conexões em que este está inserido, assim, é trazido à visão um troço de realidade em toda sua contextura. Mas o reino da realidade sem ser está rodeado por um misterioso abismo que a razão não consegue anular.
Em consonância João Lúcio não apenas acolhe as trevas, mas dá-se conta do desconhecimento que padecemos no seio da própria luz: “Saber metade só, ver só meia verdade: Pra que foi que nasceu, Senhor, a luz do dia/ Se não podemos ver com essa claridade?!”
É preciso coragem e uma sensibilidade aguda para ousar questionar desta maneira: “Quero sentir bater o coração da luz,/ Dessa luz que talvez seja noite para alguém: Eu quero adivinhar aquilo que a produz, Como foi que nasceu e de onde é que ela vem!/ (…) Oh Luz encarcerada, ao longe, nas estrelas:/ Eu quero adivinhar a tua proveniência,/ Saber como nasceste, oh grande criadora./ (…) A que obedece a tua vida estranha?/ Porque é esse teu voo superficial e estreito?/ Porque não rasgas tu o ventre da montanha?/ Porque não mostras tu o fundo ao coração,/ E não vens revelar o segredo das loisas?/ Porque é, oh luz, porque é que a tua doce mão/ Toca apenas de leve, a superfície às coisas/ E não as vás sondar, e não vás desfibrá-las,/ Para que a gente saiba o que há dentro delas?/ Tu que tens, pra falar, os lábios das estrelas?”
Desafiam-nos, Zambrano e Lúcio, para lá do nosso habitual modo de intelecção!
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Fevereiro)