Mil Grous, de Yasunari Kawabata, com tradução de Mário Dias Correia, foi reeditado pela Dom Quixote, editora que tem vindo a publicar a obra deste autor japonês, laureado com o Nobel da Literatura em 1968.
Kikuji é convidado para uma cerimónia do chá organizada por Chikako, uma antiga amante do falecido pai. Mas desconhece que está prestes a ser envolvido numa trama intricadamente feminina, pois na cerimónia, além de uma belíssima rapariga, em que Kikuji parece reparar sobretudo pelo seu lenço com mil grous, está igualmente presente a senhora Ota, a rival e sucessora de Chikako, isto é, a segunda amante do pai. A senhora Ota faz-se ainda acompanhar da sua jovem filha.
As origens do culto do chá – como explicado na nota inicial à tradução inglesa – remontam ao século XIII, coincidindo com a introdução do budismo zen no Japão. A esta cerimónia do chá – bebida que intenta cultivar o espírito – há toda uma simbólica, parafernália de instrumentos e técnica ritualística. Destaca-se sobretudo o silêncio e a contenção de gestos – que é tudo aquilo que não encontramos ao longo desta narrativa, nos vários momentos em que se prepara o chá. É aliás em frente e em torno das chávenas de chá que se criam as cenas que impulsionam a ação.
Kikuji vê-se no centro de uma luta feminina, em que dá por si numa teia em que Chikako, aquilo que tem de mais próximo de um parente, lhe tenta arranjar uma noiva, ao mesmo tempo que se procura vingar da senhora Ota. A antipatia de Kikuji e a prepotência de Chikako, que se comporta como senhora da casa – até porque conhece o jovem amo desde criança – dão azo a diálogos absolutamente delirantes, de chiste e provocação constantes. As marcas que cada um traz em si, seja na sugestão de vermelho na borda de uma chávena muito usada, seja numa marca de nascença a cobrir o peito de Chikako, remetem também para as imperfeições características de cada um, que lhe conferem autenticidade.
Uma história belissimamente escrita, que podia aliás ser adaptada a teatro, com um final agridoce, sobre a paz de um homem – a contenção e o distanciamento de Kikuji são constantes – no centro das tempestuosas paixões das mulheres que orbitam na sua vida.
Um romance que tem tanto de trágico como de lírico, em que a própria natureza e ambiência parece refletir o estado de alma das personagens. Ou talvez seja a natureza algo cambiável, moldada pelo estado de espírito das próprias personagens.
Yasunari Kawabata nasceu em Osaka, em 1899. Ficou órfão aos dois anos de idade. Formou-se em Letras pela Universidade Imperial de Tóquio, em 1924, e, em 1927, publicou o seu primeiro livro: A Dançarina de Izu.
Terra de Neve (1937), Mil Grous (1952), O Som da Montanha (1954), A Casa das Belas Adormecidas (1961) e Kyoto (1962) são os seus romances mais conhecidos, traduzidos para português e editados pela Dom Quixote.
Foi presidente do Pen Club Japonês e ainda um eminente crítico literário, que descobriu e apoiou uma nova geração de escritores, incluindo Yukio Mishima. Em 1968 recebeu o Prémio Nobel de Literatura, vendo assim consagrada internacionalmente a sua obra.
Kawabata suicidou-se em 1972, aos 72 anos.
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