Athaíde Oliveira, na página 154 da sua bem conhecida Monografia do Concelho de Loulé, publicada em 1905, afirmava em relação a uma caverna no sítio da Salustreira: “Já ali, em tempo, se estabeleceram uns ingleses, que fizeram grandes investigações, cujos resultados foram desconhecidos, não só porque a ninguém deram conta, mas porque levaram consigo tudo quanto ali apuraram“. Quem seriam esses ingleses e o que levaram da caverna? Esta questão permaneceu envolta em algum mistério até que trabalhos de pesquisa documental recentes, no âmbito do Projecto Património Espeleológico do Algarve (DRCAlgarve / ICArEHB – UALG) permitiram melhor conhecimento.
Desde há muito que as grutas do Algarve acicatam a curiosidade de investigadores portugueses e estrangeiros. Já em meados do século XIX o geólogo francês Charles Bonnet pesquisou algumas grutas na região de Loulé, embora sem resultados arqueologicamente relevantes.1O arqueólogo Estácio da Veiga revelou particular interesse pelas grutas da região, as quais procurou inventariar e descrever, trabalho que integrou na sua distinta obra “Antiguidades Monumentais do Algarve”, no 1.º volume, publicado 1886. Entre outras grutas deu atenção à Caverna da Solestreira (ou Salustreira), em Querença, Loulé, sobre a qual recolheu informação. Referiu que dela eram então extraídas grandes quantidades de guano de morcego para fertilizar as terras agrícolas e que durante a extracção surgiam pedaços de cerâmicas antigas, indiciadoras do interesse arqueológico da gruta. Esta informação transmitiu-a Estácio a um investigador da Universidade de Cambridge, Hans Gadow, quando este esteve em Faro no ano de 1884. Não obstante a formação de Gadow ser na área da biologia, este interessou-se claramente pelos depósitos arqueológicos em gruta, possivelmente influenciado pelas importantes descobertas que revolucionaram o conhecimento da pré-história na segunda metade do século XIX, em contextos de grutas do ocidente europeu, inclusivamente na Estremadura portuguesa na sequência de escavações realizadas sob a égide da então Comissão Geológica de Portugal.
Gadow ficou de tal modo interessado nas grutas da região que regressou com o objectivo de proceder a intensivas pesquisas. Visitou grutas em Alte, Salir e Querença, tendo a sua preferência recaído sobre as chamadas Solestreiras, duas grutas próximas, que viria a escavar em Julho de 1885. Para o efeito conseguiu uma carta de recomendação do então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Barbosa do Bocage, dirigida ao Governador Civil do Algarve, o que lhe proporcionou o apoio logístico dos poderes locais. Com a autorização escrita de Manoel da Silva, o proprietário, Gadow contratou seis mineiros e contou com o apoio de Thomas Warden, engenheiro civil então em serviço na Mina de São Domingos (Mértola). O pesquisador e a sua equipa estiveram acampados durante sete dias na gruta que apresenta entrada mais ampla, sendo diariamente abastecidos de víveres por um habitante de Querença. Foram então escavadas várias sondagens em ambas as grutas, o que permitiu a exumação de ossos e dentes humanos acompanhados de alguns artefactos, destacando-se grande número de contas de colar feitas de mineral verde “calaíte” (provavelmente um mineral do grupo das variscites) e um artefacto em osso de veado que foi então interpretado como sendo um punhal (tipologicamente um formão). Pela descrição os restos são compatíveis com contexto de necrópole da Pré-História recente, apesar de não ter sido registada a presença de cerâmicas ou outros artefactos que ajudem a uma melhor resolução cronológica. De acordo com a informação prestada a Gadow pelo antigo proprietário do terreno em que se encontram as grutas, a Solestreira do lado poente estivera fechada com uma lage de pedra e no seu interior terão sido descobertas três “sepulturas”, assim como recipientes cerâmicos “com formas peculiares”. Presume-se que os contextos arqueológicos devem ter sido extensivamente perturbados e removidos aquando da exploração de guano e dos sedimentos subjacentes para uso agrícola, antes da intervenção arqueológica, perdendo-se a informação que deles poderia ter sido obtida.
A campanha deu origem a uma crónica que, para além da relevância arqueológica, constitui uma descrição pitoresca, em estilo vitoriano, focando aspectos de diversa natureza, cuja edição veio à estampa em 1886, em artigo publicado pela Universidade de Cambridge2, mas que acabaria por não alcançar a merecida divulgação, mantendo-se, ao que tudo indica, ignorado em Portugal até muito recentemente. O documento reveste-se de particular interesse por constituir o mais antigo registo de escavações assumidamente arqueológicas, com resultados relevantes, realizadas em gruta do Algarve.
Quanto ao paradeiro dos materiais arqueológicos recolhidos por Hans Gadow, em parte perderam-se logo após a recolha, incluindo as contas de mineral, num acidente ocorrido durante o carregamento de uma mula utilizada para o transporte, conforme o próprio dá conta; outra parte foi levada para Cambridge, no Reino Unido. Confirmou-se que, de facto, existe presentemente um conjunto de peças arqueológicas fornecidas por este investigador e provenientes de Portugal no acervo do Museum of Archaeology and Anthropology (MAA)da Universidade de Cambridge. A informação constante da respectiva etiquetagem revela-se por vezes equívoca, mas é possível correlacionar com as Solestreiras pelo menos duas peças, incluíndo o dito punhal em metápode de veado.
Deve ser notado que para além do interesse arqueológico das Solesteiras estas grutas constituem também importante abrigo para espécies de morcegos protegidas, sendo altamente desaconselhada a realização de visitas ao seu interior. Apesar deste facto e dos esforços de salvaguarda promovidos pela Autarquia de Loulé, assim como pelo ICNF, estas grutas têm vindo a sofrer lamentáveis actos de vandalismo, sendo evidente a desfiguração provocada por inscrições nas paredes, quebra de formações, lixo diverso, fogueiras e outras acções que vão paulatinamente provocando a delapidação deste importante património natural e cultural de Querença e do Algarve.
[1] Mémoire sur le Royaume de l’Algarve (1850) – Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa(2ª série, tomo II, parte II)
[1] Gadow, H. (1886) – On some caves in Portugal. Proceedings of the Cambridge Philosophical Society, Vol. 5, pp. 381-391.
Frederico Tátá Regala
(Arquéologo ao serviço da Direção Regional de Cultura do Algarve)
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de setembro)