Em ‘A morte de um Apicultor’ Lars Gustafsson classificou o erotismo como a mais difícil das artes. Eros, o deus do Amor, não parece fácil de decifrar. Basta abrir a internet e saltam artigos que prometem ensinar as regras pelas quais se rege tão escorregadia divindade: “Encontre o amor verdadeiro em 27 dias”; “Os segredos que fazem o amor durar”, ou ainda “Está a afastá-lo por o perseguir? Aprenda a atraí-lo como um íman”. Esta espécie de artigos também aparece para o público masculino: “10 dicas para conquistar uma mulher”, “Como conquistar uma mulher em 15 minutos”, ou “3 formas de atrair mulheres sem fazer nada”. Os anos passam e este tipo de literatura muda de estilo mas não desaparece, porque a procura se mantém, todos queremos encontrar e viver um grande Amor!
Em busca da alma gémea
De onde terá surgido esta ideia de que há alguém no mundo cuja alma, de tão semelhante à nossa, connosco encaixaria na perfeição? Existirá porventura esse ser único com o qual experimentaríamos uma afinidade tão intensa, que deixaríamos de caminhar por este mundo solitariamente, para passar a planar sobre ele no êxtase da comunhão plena? Receio bem que a filosofia tenha alguma responsabilidade na criação de tão altas expectativas…
Aristófanes no Simpósio de Platão conta-nos que outrora, em tempos longínquos, a raça humana era andrógina. “Cada homem, no seu todo, era de forma arredondada, tinha quatro mãos, outras tantas pernas, duas faces exactamente iguais sobre um pescoço redondo e, neste duas faces opostas, uma só cabeça, quatro orelhas, dois órgãos sexuais e tudo o resto na mesma proporção. Caminhava erecto, tal como um homem actual, na direcção que lhe convinha. Quando corria, fazia como os acrobatas, que dão voltas no ar. Lançando as pernas para cima e apoiando-se nos membros, em número de oito, rodava rapidamente sobre ele mesmo”. Estes seres humanos andróginos “possuíam uma força e um vigor extraordinários e, como eram corajosos, decidiram escalar o céu e guerrear os deuses”. A tão grande ousadia correspondeu proporcional castigo! Zeus decidiu tornar os homens mais fracos e cortou-os ao meio com um cabelo.
“Cada uma das partes, lamentando a outra metade foi à procura dela e, abraçando-se e enlaçando-se umas às outras, no desejo de se fundirem numa só, iam morrendo de fome, por inacção, pois nada queriam fazer umas sem as outras”. Aristófanes mostra aqui como a falta de amor pode provocar inércia. O desalento da solidão reduz o ânimo e consome a vontade. Nos casos mais graves entra-se em depressão.
Pelo contrário, quando um homem encontra a sua cara-metade “é possuído por transportes de ternura, de simpatia e de amor. Não quer separar-se mais nem que seja por um instante!”. O seu maior desejo é “o de se fundirem com o objecto amado e de não serem dois, mas um só!”. Quando encontramos a nossa alma gémea é como se reconstruíssemos a nossa antiga natureza, “o amor é a ânsia desta plenitude!”.
E no entanto…
Que acontece algum tempo depois de encontrada a nossa metade? Algum tempo que podem ser semanas, meses, ou anos, este êxtase, esta plenitude parece condenada a não durar. Talvez nos tenhamos equivocado e aquela alma-gémea não o fosse realmente; agora já não o é de todo. Já não estamos felizes, pelo contrário, estamos aborrecidos, tristes e frustrados. Também este aspecto a filosofia não deixou de prever.
Para falar sobre Eros, Sócrates, como era seu hábito, optou por dialogar interrogando o Agatão, com uma profusão de perguntas encadeadas numa lógica infalível a que o interlocutor não pôde deixar de assentir. Reproduzo aqui algumas delas: “O amor é amor de alguma coisa ou não?”. “O amor deseja ou não o objecto que ama?”. “Quando ama e deseja, possui ou não o objecto que ama e deseja?”. Agatão apressou-se a responder que não o possui. E Sócrates lançou a estocada final: “o que deseja não possui o objecto, ou o que o possui já não o deseja?”. Deixando a audiência perplexa, derrotada, Sócrates reformulou a pergunta: “Não chegámos já à conclusão de que se ama o que nos falta e o que não se possui?”. Daqui decorre a redundante tragédia deste sentimento: se apenas se deseja o que não se possui, assim que o amado se rende aos encantos do amante o amor acaba! Que triste condição a nossa! Sofremos devido à solidão, esforçamo-nos por encontrar alguém, mas mesmo quando esse encontro improvável acontece, está condenado ao fracasso, não resistirá à erosão do tempo, ao tédio da convivência!
O antídoto
Será possível desejar o que já se tem? Questiona Sócrates: “Quando dizes desejar o que já tens não queres com isso significar que o desejas possuir igualmente no futuro?”
Talvez seja este o segredo para um amor duradouro: não tomar o que se tem como garantido. Sentir cada instante fresco e novo como uma bênção. Como fazê-lo? Prestando atenção aos pormenores. Nenhum de nós se conhece completamente a si próprio, do mesmo modo, é-nos impossível conhecer totalmente outrem. Mergulhar nas minúcias da personalidade do outro é uma viagem infinita e promissora. Por outro lado, o objecto de tão refinada atenção só pode sentir-se lisonjeado e a sua curiosidade por nós despertará também. Este processo de auto-descoberta de si e do outro pode converter-se num poderoso elixir do amor!
A genealogia de Eros
Os convivas que discursaram sobre Eros no Simpósio de Platão mostraram sobre o deus visões muito divergentes. No entanto, todos coincidiram num ponto: o que disseram foi deveras elogioso. Apenas Sócrates ao relatar o que aprendera com a sacerdotisa de Mantineia foi discordante.
Diotima, contou-lhe que terá sido no banquete de celebração do nascimento de Afrodite, deusa do Amor, que Eros foi concebido. A sua mãe, Penia, a Pobreza, veio mendigar as sobras do repasto e ao encontrar Poros, deus do Engenho e do Acesso, já turbado pelo néctar que tinha bebido, aproveitou-se dele gerando um filho. Eros herdou características de ambos progenitores. “Em primeiro lugar é pobre, e, longe de delicado e belo como geralmente imaginamos, é rude, sujo, anda descalço, sem eira nem beira”. É um sem abrigo indigente como a sua mãe. Por outro lado, “herdando a natureza do pai, vive à procura do belo e do bom; é bravo, audaz, ardente e filósofo”.
Diotima explicou ainda que “todos os homens são fecundáveis, segundo o corpo e o espírito”. A procriação é o único meio que um mortal encontra para se perdurar, mas os que são fecundos segundo o espírito só desejam a criação no domínio da alma: “a sabedoria e outras virtudes, que têm por pais todos os poetas e artistas de génio”. Eros que se encontra num meio termo entre a sabedoria e a ignorância, não pode deixar de filosofar, ama a sabedoria mas não a possui, por isso dedica a sua vida ao esforço de a alcançar.
Este desejo de saber, este sentir-se obrigado a procurar, estas perguntas que nos abrasam e dilaceram no seu sem resposta incessante, são a prova de que a filosofia é, por excelência, uma actividade erótica!
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(Artigo publicado na edição papel do Caderno Cultura.Sul de Dezembro)