Era um algarvio natural do Porto, cidade onde nasceu em 1909. Aos 24 anos veio para o Algarve e por cá ficou.
Professor, reitor por várias gerações no Liceu de Faro, Joaquim da Rocha Peixoto de Magalhães, foi uma figura multifacetada. Fora do ensino, afirmou-se como uma referência cívica, moral, cultural e literária da sociedade algarvia.
Hoje, quase 21 anos após a sua morte, o POSTAL associa-se ao aniversário da cidade de Faro, recordando uma entrevista dada pelo dr. Joaquim Magalhães, a 7 de Setembro de 1984. Duas vidas numa conversa de fita corrida, em entrevista concedida ao jornalista Ramiro Santos, no então Emissor Regional do Sul.
P – No dia em que vai ser homenageado pela cidade de Faro, não podemos deixar de recordar que o seu nome fica para sempre, indissociavelmente, ligado à figura e obra de António Aleixo. E não ficou esquecido nas quadras do poeta:
“O tal Aleixo, o poeta/ que dizem ser de Loulé/ era uma pessoa incompleta/ sem o Magalhães ao pé.”
R – Encontrei o Aleixo pela primeira vez nuns Jogos Florais do Ginásio Clube de Faro em 1937. Ele ganhou o 4º prémio com o pseudónimo “cantador algarvio”. Nesse dia, para ir à festa, ele conseguiu que lhe fosse emprestada uma fatiota. Quem lha emprestou foi Othman da Franca, filho do poeta Cândido Guerreiro. No dia seguinte, despida a fatiota, fez aquela quadra:
“Ontém rei, hoje sem trono/ cá ando outra vez na rua/ entreguei o fato ao dono/ e a miséria continua.”
P – Ele escreveu-a e entregou-lha ou foi repentina?
R – Ele não escrevia. Só começou a escrever quando foi daqui para Coimbra para ser tratado no sanatório e que teve como “empurrãozinho” a publicação do livrinho “Quando começo a cantar” que fizemos no Círculo Cultural do Algarve, em 1943. No verão desse ano, declarou-se-lhe uma lesão nos pulmões e ele precisou de ser internado. Em Coimbra, estava nessa altura, o artista algarvio Tossan a quem eu mandei o livro e com ele foi apresentá-lo ao director do sanatório, dr. Armando Gonçalves que levou o caso ao Professor Byssaia Barreto juntamente com uma quadra do livro:
“Se pedir peço cantando/ sou mais atendido assim/ porque se pedir chorando/ ninguém tem pena de mim.”
P – Quando se fala em poesia ou cultura popular, fala-se sempre em António Aleixo. Ele marcou assim tanto, a sociedade?
R – Marcou, claramente. Ele, disse António José Saraiva, teve a vantagem sobre todos os outros poetas de ter sido editado em livro, segundo o próprio, por iniciativa de um professor de Liceu:
“Não há nenhum milionário/ que seja feliz como eu:/ tenho como secretário/ um professor de liceu.”
Isso deu-lhe essa vantagem e estimulou e criou o interesse de muitos outros e muitas pessoas começaram a recolher as quadras e poemas de outros autores como, Henrique Pardal, de Quarteira, José Diogo Parente, de Paderne e José Soares Parente, de Estoi.
P – O Aleixo terá tido a sorte de ter encontrado o Professor pelo caminho…
R – Eu creio que sim, para ele e para mim. Ele hoje é um poeta consagrado e eu sou apenas um pendura do poeta Aleixo. Ando quase sempre a reboque dele, porque, normalmente, quando se fala dele, fala-se de mim. Normalmente… porque há alguns autores parece até que foram eles que o descobriram!…
P – Não haverá novos Aleixos por aí?
R – Pois concerteza que há. Simplesmente, o caso do Aleixo é o de um poeta singular. Ele às vezes parece mais do que um poeta ou menos do que um poeta, não sei bem… e mais como um pensador, um moralista que perante a vida e perante os homens, qualquer motivo serve para ele fazer sob a forma aforística, uma quadra popular mas com uma perfeição lapidar que poucos têm. Isso é uma superioridade enorme. Veja só esta quadrinha. Uma vez vínhamos em Loulé, a descer a rua, e junto à praça, andava uma sujeito com uma enxada a desviar a água porque estava a chover e diz-me ele assim:
“Quem prende a água que corre/ é por si próprio enganado/ o ribeirinho não morre/ vai correr para outro lado.”
Repare: aqui não há adjectivos. É só substantivos e verbos, quer dizer, as palavras fundamentais. E esta quadra como tantas outras, é uma conclusão que se aplica a imensas coisas.
P – O Aleixo era um homem extremamente atento à vida e muito crítico…
R – Sim, extremamente, atento à vida. Ele diz isso mesmo:
“Embora os meus olhos sejam/ os mais pequenos do mundo/ o que impora é que eles vejam/ o que os homens são no fundo”.
Repare que esta é a quadra que serve para a gente ler todo o livro e interpretá-lo. O que a gente encontra na sua obra é uma tentativa de descobrir o que os homens são no fundo. Ele tem um sentido crítico e profundamente observador. De tudo e de todos, inclusivamente dele, como uma caricatura de si próprio, por vezes.
P – Filósofo, guardador de gado, analfabeto?…
R – Analfabeto?… nem tanto como se supõe. Ele era capaz de ler e lia. Ele fez uma terceira classe incompleta, mas não aprendeu nunca a escrever com uma correcção ortográfica. Esse foi o meu papel, fazer a ortografia correcta e a pontuação. Foi essa a minha função de secretário. Ele lia qualquer coisa, o Camilo, o Júlio Dinis… também lia jornais mas não tanto como se poderia supôr. Era sobretudo um homem muito atento com uns olhinhos pequenos que viam profundamente tudo o que o rodeava!
Como guardador de gado, apenas numa fase da sua vida, quando estava doente do estômago, vindo da França onde foi emigrante como servente de pedreiro. Veio a ser operado e como não podia beber senão leite, pediu dinheiro emprestado a uns amigos para comprar umas cabrinhas que ele guardava e era com o leite delas que ele sustentava a sua úlcera!
P – Mas ele não fez só quadras!?
R – É quase tudo feito à base da quadra. Chamava ele quadra ao que popularmente se chama a um mote glosado em décimas. Ele dizia-as ou alguém as escrevia, o tipógrafo compunha-as e o poeta vendia-as depois de feira em feira. Mais tarde quando foi para Coimbra formou-se em… teatro. Foi com a ajuda de Tossan que ele escreveu o Auto do Curandeiro, uma caricatura acerca de casos que ele conheceu na vida real de pessoas que curavam ou diziam que curavam através de rezas ou de mezinhas.
Este género não era o seu forte e ele ainda não tinha visto representar o Gil Vicente, pelo Teatro Académico. O Tossan fez grande propaganda dele junto do dr. Paulo Quintela, dizendo que o Aleixo tinha todas as condições para se afirmar como um grande autor de teatro popular contemporâneo. E escreveu então uma alegoria que é o Auto da Vida e da Morte.
Com o 25 de Abril deu-se a explosão da popularidade do poeta que antes já havia sido cantado e gravado pelo José Afonso e outros cantores. Mas talvez não se saiba que o primeiro a ler em público uma quadra de António Aleixo, na televisão, foi o João Villaret:
“Sei que pareço um ladrão/ mas há muitos que eu conheço/ que não parecendo o que são/ são aquilo que eu pareço.”
P – Falemos agora de si… o dr. Joaquim Magalhães saiu do Porto…
R – Saí do Porto com 24 anos. Sou tripeiro da freguesia da Sé e algarvio por adopção porque aqui constituí família e por aqui me deixei ficar.
P – O que é que o seduziu tanto no Algarve?
R – Eu cheguei cá numa madrugada no dia 17 de Outubro de 1933. Vim no comboio das 6 e meia. Eu sou muito friorento e a luz maravilhosa de Outubro, foi a primeira sedução. E depois, esta é uma terra de caras bonitas. Eu era um rapazito novo e deixei-me enfeitiçar e casei com uma louletana que também era professora. Depois vieram os filhos, as doenças e outras razões da vida que nos obrigam a ficar. Uma delas prendeu-se com a morte aos 7 anos da minha primeira filha. Esta é uma razão que, parecendo que não, acaba por nos prender a uma terra, como foi o meu caso.
P – Acompanhou ao longo de décadas a evolução da cidade de Faro. Como era a cidade e como é?
R – Era uma cidade que não havia ainda subido ao terceiro andar. Estava ainda no rés do chão e havia apenas uma ou outra casa de primeiro andar. Isto tem a ver com a índole de independência do algarvio que não gosta de ter ninguém por cima. Depois, as coisas mudaram e o dr. Amadeu Ferreira de Almeida foi um dos primeiros a defender o crescimento da cidade em altura e em blocos, o que era quase um atentado.
Os altos edifícios são agora as novas muralhas da cidade, mas o verdadeiro património é a vila adentro amuralhada. É preciso manter aquela identidade que nasceu rodeada de água por todos os lados.
P – Sentiu-se sempre uma pessoa estimada e querida pelos farenses e pelos algarvios, de um modo geral…
R – Tudo quanto fiz foi sempre em nome da comunidade. Fui sempre norteado pelo princípio “penso, logo devo”. Se alguma coisa está dentro das minhas capacidades, eu sinto a obrigação de fazê-la. Foi dentro deste espírito que eu participei em tudo na vida.
P – E julga que é reconhecido por isso?
R – Penso que tenho muitos mais amigos do que aqueles que não me querem bem! E isto é muito reconfortante.
NOTA BIOGRÁFICA: No ano escolar de 1933/34, é colocado no Liceu João de Deus, como professor agregado, e efectiva-se no Liceu Jaime Moniz, no Funchal, onde lecciona no ano de 1934/35. Em Faro, é professor efectivo de Português e Francês de 1935 a 1974, ocupando em simultâneo outros cargos, nomeadamente os de Director de Classe e de Ciclo, Secretário, Vice Reitor e Reitor (de 1968 a 1974). Com o 25 de Abril de 1974, é o primeiro Presidente do Conselho Directivo da gestão democrática. Cumpre missões de serviço em elaboração de pontos de exame e de aprovação de livros escolares de Português e Francês.