Hoje fomos à ribeira. Havia uma laje no meio da corrente que a água contornava; saltei de pedra em pedra e sentei-me lá. Só se ouvia o som de uma pequena catarata que descia das rochas um pouco mais acima. Olhei para trás e lá avistei a Laura, cuidadosa, deslizando sentada.
Embevecida com o despenhar das águas caindo das alturas, na transformação que se lhe seguia, no deslizar sereno do estreito regato, vagueei no antes e no depois; no percurso que antecedia e sucedia aquela pequena catarata, como se ela representasse o meio da minha vida. Um tempo em que precisava do doer das quedas para aprender a deslizar de uma forma mais suave, à velocidade de uma outra corrente. A contornar os obstáculos, a abrandar a corrida.
Com os tombos fui descobrindo que há percursos mais fáceis. Aprendendo que por vezes tenho de estreitar os caudais, de alargar as margens, de reaprender a ser regato já tendo sido rio. Não construir barragens que cortem as correntes e abrir as comportas construídas em mim. Libertar o que já não é “nós” e deixá-lo seguir um outro caminho, rumo a outras metas. Aceitar que há outras metas e que todas elas são um final, mas não o fim de tudo o que tem de continuar. Fui aprendendo a recomeçar rumo a outro destino, a moldar-me a outra forma, a construir-me num outro estado. A evaporar-me rumo aos céus nas asas de outros sonhos. A chorar as chuvas de inverno… dos meus invernos. A esperar as cores e as primaveras que farão colorir. A engrossar outros regatos, a fazê-los ser rios. A orvalhar com emoção as minhas sequidões; a inventar oásis nos meus desertos. A fazer da serenidade a burca que cobre as minhas tempestades, e as estrelas que me habitam… onde habito. E voltar a nascer em alguém, em algum lugar. A cair, levantar, correr, abrandar as marchas. Aceitar que continuo nascendo, tantas vezes quantas já morri, numa mistura de constância e essência que ilude, porque sendo da natureza, a inconstância, de tanto se repetir deixou de o ser.
Aprendi a aceitar as correntes que me arrastam para lugares opostos a alguns anseios, sem esbracejar, condição inata em mim de sobrevivência, de voltar a viver, a ser feliz. Aprendi a aceitar que posso ser tudo o que não sou, nas lembranças de cada um que me conheceu.
Saber que no final seja qual for o caminho, acabarei enrolada numa onda qualquer e transportada a terra firme, onde descansarei de novo.
A Laura acabava de chegar ao meio da ribeira e ao pé de mim. Estava na hora de pousar os pensamentos que tinham sobrevoado as constantes inconstâncias da minha natureza e continuar a caminhada.
Será que existe constância em alguma natureza?
Aqui nas margens da ribeira no ano que passou, nesta mesma altura, no lugar das ervas secas de agora havia poejos; e lá ao longe as planícies que verdejam, estavam tapetadas do branco das magarças… tudo tão igual na sua essência, tão diferente na sua constância, pensei!
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de agosto)