Durante muitos anos, as únicas leituras que fazia em inglês eram apenas as exigidas pelos trabalhos académicos, livros e artigos de que precisava para as minhas investigações. Achava que não conhecia suficientemente bem aquela língua para me atrever a ler ficção. Um dia, tendo visto à venda, numa livraria inglesa, The importance of being Earnest, a minha peça favorita de Oscar Wilde (da qual conhecia também várias versões teatrais e cinematográficas), ganhei coragem e comprei. Pelo menos, sabia que não iria perder-me, pois conhecia muito bem o texto. A partir daí, passei a preferir ler em inglês os autores de língua inglesa.
O título que dei à página de hoje reflete uma pergunta que me surge, por vezes, por razões diversas: quão importantes são os nomes? Como fazer para que não se percam numa tradução? Toda esta peça de Wilde se desenrola em torno da homofonia entre o adjetivo earnest (sincero) e o nome próprio Ernest. Lembro-me de ter lido várias traduções, nenhuma dela dando completamente conta do jogo fonético entre estas palavras, mas tentando arranjar adjetivos que, em português, além de terem um sentido próximo de earnest (sincero, sério, honesto), fossem também nome próprio (ou apelido, em algumas das soluções). Tenho uma versão, de António Pedro, que escolheu Quanto importa ser Leal; outra, de Isabel Morna Braga, que preferiu A importância de ser Amável; uns traduziram por A importância de ser Severo; outros ainda por A importância de ser Honesto. Na peça, a jovem Cecily afirma «my ideal has always been to love some one of the name of Ernest» («o meu ideal de sempre foi amar um homem que se chamasse Amável» – na tradução de I.M. Braga), pensando que o homem que ama (e que a ama) se chama assim; ele, que não tem esse nome (ou julga não ter, mas não vou revelar o final), ao perceber a importância que ela dá a ser/chamar-se Amável (ou Leal, ou Severo), tenta convencê-la de que há muitos outros nomes igualmente bons, porém não a consegue persuadir. O jogo de palavras funciona melhor na oralidade, onde as maiúsculas que distinguem os nomes próprios não existem e a frase final pode ser entendida nos dois sentidos que a escrita condiciona: «descobri agora, pela primeira vez na minha vida, a extraordinária importância de ser Amável!».
Os nomes são considerados importantes, quer o nosso, que nos distingue, quer o da nossa família, que nos identifica e nos integra num grupo.
Na literatura, há muitos exemplos desta importância. Na Ilíada de Homero, esse poema primordial da literatura europeia, que narra o final da Guerra de Troia, a resposta à pergunta «Quem és tu?» (6.123), que o herói grego Diomedes faz a Glauco (aliado dos troianos), provoca um dos momentos mais poéticos da obra: «por que queres saber da minha linhagem?/ Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens./ Às folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço/ faz nascer outras, quando sobrevem a estação da primavera:/ assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir» (6.145-149).
Um simples pronome indefinido
Um outro momento homérico, desta vez na Odisseia, o poema que narra o regresso de Ulisses a Ítaca, acontece quando o herói e os seus companheiros estão presos na caverna do gigante Polifemo e este lhe pede que diga o seu nome, ao que Ulisses responde: «Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-me/ a minha mãe, o meu pai, e todos os meus companheiros.» (9.366-7). Esta astúcia de Ulisses provoca um momento de cómico de linguagem: depois de ficar cego, Polifemo grita tanto que os outros ciclopes acorrem à gruta, perguntando «“Que se passa, Polifemo, para gritares desse modo/na noite imortal, tirando-nos o sono?/ Será que algum mortal te leva os rebanhos,/ ou te mata pelo dolo e pela violência?”// De dentro da gruta lhes deu resposta o forte Polifemo/ “Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência!”». Esta resposta é incompreendida pelos outros, que se afastam, e Ulisses comenta, na sua narrativa «E ri-me no coração,/ porque os enganara o nome e a irrepreensível artimanha.» (9.403-8; 413-4).
Na literatura portuguesa, temos um momento igualmente famoso. Na peça de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa, quando o aio de D. João reconhece a voz do seu senhor, pergunta: «Romeiro, quem és tu?». D. João, descobrindo-se, responde: «Ninguém, Telmo; ninguém, se nem já tu me conheces» (Cena V). Porque o nosso nome deixa de fazer sentido quando perdemos a identidade ou esta não é reconhecida pelos outros. Daí que uma mudança de identidade seja sempre acompanhada por uma mudança de nome, ou o vincar de uma personalidade se faça acompanhar de um cognome (como no caso dos reis. Por exemplo, D. Dinis, o Lavrador).
Em português, temos gentílicos que passaram a apelido: de Bragança, de Travassos, etc. Na Grécia antiga, não havendo apelidos, os indivíduos eram conhecidos pelo seu nome, seguido do nome do pai e/ou do da terra onde tinham nascido. Assim se distinguia Xenofonte de Atenas (o historiador) de Xenofonte de Éfeso (o escritor de ficção), ou Aristófanes de Atenas (o comediógrafo) de Aristófanes de Bizâncio (o bibliotecário de Alexandria). Para designar o patronímico, usava-se frequentemente o elemento -id-: Zeus, filho de Crono, é chamado de Crónida; Agamémnon e Menelau, filhos de Atreu, são conhecidos como os Atridas; Aquiles, filho de Peleu, é o Pelida. Em Portugal, há apelidos que também começaram por ser indicadores do nome do pai: Fernandes – filho de Fernando; Mendes – filho de Mendo; Bernardes – filho de Bernardo; e tantos outros. Atualmente, perdemos essa noção, na nossa e em outras línguas onde um fenómeno parecido ocorria: hoje, um inglês chamado Johnson não é, necessariamente o filho (son) de alguém chamado John.
Os nossos nomes
Na hora de escolher o nome dos filhos, devemos ter sempre muito cuidado, porque há nomes tão cheios de história que pode ser desafiante carregá-los a vida toda.
Termino com um excerto do conto «As Noites da Íris Negra», de Enrique Vila-Matas:
«– E que espécie de homem é Uli? – perguntei.
– Ulisses – disse Catão. – E uma nossa irmã, que já morreu, chamava-se Medeia. Os nossos pais levaram longe de mais, como veem, o seu amor pela antiguidade clássica. (…) Os nomes marcam muito a vida das pessoas (…). Aquiles ou Diomedes ficavam-lhe melhor. Ter-lhe-iam inculcado um espírito pretensioso, guerreiro, orgulhoso. Mas não. Tiveram que chamá-lo Ulisses, e isso creio, ao fim e ao cabo, foi-lhe fatal.» (In Suicídios Exemplares, p.90. de, Assírio & Alvim, tradução de Miguel Castro Henriques).
Por vezes, temos de fazer as pazes com o nosso nome. Eu já fiz.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Janeiro)