“A delicadeza cabe em toda a parte!” costumava dizer a minha avó, se ouvia algum tom de vós mais ríspido entre nós, os netos, que ali passávamos as tardes infantis. A frase ficou-me no espírito. Aprendi, com muito treino, a conseguir comunicar sobre assuntos controversos, não apenas com educação, mas também com esse modo de ser que se expressa desde a postura do corpo ao tom de voz, com a arte da delicadeza.
Qual não foi o meu espanto quando em 1996, embreada no estudos de doutoramento, encontro entre os inéditos de María Zambrano este texto precioso que aqui traduzo.
A filigrana da escrita de María Zambrano impõe-me que deixe o seu texto intocado. Modifica-se apenas, em sonoridade e caligrafia, o que transferência de uma língua para outra exige, tentando preservar a respiração da sua escrita, a musicalidade de cada frase.
A Intercomunicação dos Sentidos: a Delicadeza
María Zambrano
“Tão sistemática é a vida que já no plano sensorial se mostra este seu carácter. Os sentidos não são canais isolados que conduzem a realidade até nós, é coisa bem sabida. É coisa bem sabida, especialmente desde Kant, que os dados dos sentidos se ordenam, desde o nascimento, segundo as formas do espaço e do tempo, próprias da mais íntima estrutura da sensibilidade do homem, e a par da estrutura da realidade.
Pela sua parte, a Psicologia estudou há muito tempo o processo de integração dos dados dos sentidos, segundo o qual, isso que vemos e ouvimos aceitando-o como uma transcrição passiva da realidade, é o resultado de uma unificação operada pelo cérebro humano, pelo pensamento, e pela própria razão.
Num ser constituído desta maneira, é indispensável que os sentidos entre si comuniquem e formem um sistema, como se diz das montanhas, dos rios e afluentes. Parece que até na natureza rege o sistema.
À luz destas considerações podemos discernir facilmente que muitas virtudes ou qualidades de entre as mais preciosas do ser humano provêm ou pelo menos necessitam da comunicação entre si de vários sentidos, e que sejam como a flor e a cifra desta conjunção sensorial operada, certamente, por alguma coisa que não é sensorial, por esse guia que habita o homem, por esse hóspede que conduz os seus passos sempre mais além, por esse que o arrancou um dia do seu estado primário fazendo-o ultrapassar fronteira atrás de fronteira. Essas qualidades ou virtudes, ― no sentido também da virtus latina, quer dizer, de força e poder eficazes ― às que aludimos, são o expoente do mais alto grau de civilização, as que medem o verdadeiro nível a que chegou a condição humana. Assim é a delicadeza.
É uma virtude eminentemente social, a delicadeza, ainda que tenha uma extensão muito ampla e, nela própria, diversos planos. Mas o que de comum se descobre em toda a gama da delicadeza como virtude é a sua referência ao saber lidar, seja com pessoas, seres vivos, ou coisas. Entendida como qualidade, a delicadeza é a extrema finura que possuem certas flores e criaturas naturais, certos tecidos, porcelanas ou cristais, certos objectos fabricados pela mão do homem, o que nos devolve a delicadeza como acção ou como virtude.
Costuma considerar-se a delicadeza como produto da educação. Sem dúvida alguma que certo tipo de educação tendia, sobretudo, a consegui-la: a educação das jovens mulheres nos séculos XVIII e XIX, por exemplo; a educação cavalheiresca desse momento de grande refinamento a que Huizinga chamou ‘o outono da Idade Média’. Mas sem negar o deliberado cultivar da delicadeza nas cortes, nos conventos, nas classes altas de diversas épocas, a vida mostra como a delicadeza salta ali onde em virtude destes historizantes preconceitos não se está à espera, e, às vezes, em lugares que pareceria que não poderiam jamais albergá-la, vem ao nosso encontro como um perfume ligeiro e penetrante no meio de uma ruela suja. Pois a delicadeza apresenta-se assim, quase sem ser notada, como esses perfumes que se sentem pouco mas que logo acabam por impregnar por muito tempo e cuja recordação é mais viva que a sua presença.
A delicadeza seja como qualidade, seja como virtude, pertence a essa família de seres e coisas cuja ausência é mais intensa, mais viva que a sua presença, seja porque se sente a sua falta, seja porque nos recordamos delas. Porquê ― perguntamo-nos às vezes ― em que consiste este fenómeno suscitado por certo tipo de beleza e valor moral que fazem com que quando já não estão nos deixem, ainda como sensação, uma impressão mais viva e mais forte do que quando a sua presença era imediata? Certos perfumes, certos matizes de cor numa rosa, certos tons de um pôr do sol, certos sorrisos, certos perfis, certas mãos vistas de relance, certas silhuetas apenas entrevistas, certas palavras ditas levemente, uma música que mal difere do rumor da brisa. No campo da ética, certas insinuações que ficaram por recolher pela nossa consciência, por causa da sua leveza ou da sua brandura, longe de terem ido para ao esquecimento. Não indica isto, acaso, que a delicadeza é um produto último do espírito humano e, por isso mesmo, indelével? A delicadeza, na verdade, ali, onde quer que apareça, é imperecedoura…
Manifesta-se já desde o alvor da cultura: vasilhas, diademas, braceletes, broches de ouro ou de outros metais da Idade dos Metais saem um dia à luz, resplandecendo não tanto pelo brilho do ouro, mas pela plenitude da delicadeza com que foram lavrados. Também alguns monumentos do Neolítico assustam, intimidam, porque unem à majestade da arquitectura primária, o ritmo subtil, delicado.
Não pode conseguir-se a delicadeza seja em acções, palavras ou obras, senão pela conjunção do ouvido, da vista e do tacto. Vêm à mente, por si mesmas, metáforas tais como a de ‘uma pessoa com tacto’, o ‘ouvido fino’, ‘a vista perspicaz’, e tantas outras. O ouvido é, sem dúvida, o sentido primário, protagonista da delicadeza, pois o ouvido traz-nos não só rumores e sons, mas também, o sentido da orientação e do equilíbrio. A delicadeza é um último, subtilíssimo, equilíbrio; às vezes a delicadeza consiste em deter-se a tempo; a vista proporciona a medida e, portanto, a mesura; o tacto, esse conhecimento imediato, directo, das coisas, proporciona o fundamento material da delicadeza, assim como a vista e o ouvido, a sua forma.
Mesmo com tudo o que pudéssemos continuar a dizer acerca da delicadeza, o seu mistério ficaria sempre a flutuar. Em último termo, sempre se disse que a delicadeza é um segredo; um segredo como alguns jardins fechados dos quais transcende apenas o perfume.”
O artigo de Maio, sobre a confusão, terminou apontando o caminho para se tratar a si próprio com gentileza, essa irmã gémea da delicadeza. Possamos pois, neste Café Filosófico de Junho, embrenharmo-nos na tessitura destas qualidades.
Inscrições para o Café Filosófico: [email protected]
Artigo publicado no Caderno de Alcoutim de junho.
(CM)