Aos olhos do apaixonado, não existe nada de mais precioso e belo que o objecto do seu amor. Como expressar o seu encanto, a sua graça?
No Cântico dos Cânticos de Salomão, cuja data é incerta, podendo oscilar entre o séc. X e o séc. II a.C., o amor manifestava-se assim: “Como és formosa, minha amada, como és formosa: teus olhos são como os das pombas através do teu véu; teus cabelos, como um rebanho de cabras que vêm descendo dos montes de Galaad; / teus dentes, como um rebanho de ovelhas tosquiadas que sobem do lavadouro: todas com filhotes gémeos, nenhuma estéril entre elas. / Teus lábios são como uma fita escarlate e tua fala é doce; como a metade da romã, assim as tuas faces através do teu véu.”
Se uma jovem do séc. XXI recebesse esta declaração de amor como reagiria?
Comparar os seus olhos a pombas talvez não seja muito boa ideia pois o pombos são considerados os “ratos do céu”, uma autêntica praga das cidades que tudo arruínam com os seus imundos dejectos. Difícil seria perceber a comparação com um rebanho de cabras a descer um monte, porque só com alguma sorte, numa excursão ao campo, se avistariam. Ainda assim, a imagem poderia não ser de uma beleza evidente. Quanto à louvada fertilidade, a promessa de vir a ter imensos filhos é mais indiciadora de pesadelo do que de outra coisa qualquer. A preocupação é precisamente a oposta, bloquear a fertilidade, utilizar os contraceptivos de maneira adequada por forma a não colocar filhos indesejados no mundo. Quanto à boca, ainda que as jovens de hoje soubessem identificar escarlate com a cor vermelha, certo é que, frequentemente, pintam os lábios de outras cores como roxo ou preto. A fala doce, por seu lado, pode ser entendida com ser uma “choninhas”, uma “atada” ou uma “tótó”, e a face de romã poderia facilmente ser interpretada como uma cara cheia de borbulhas.
Hoje em dia o rapsubstituiu a serenata, já ninguém escreve cartas de amor em papel perfumado, as palavras seguem por formato digital, via SMS, WhatsAppou Messenger. Como se declara um adolescente do séc. XXI? Talvez pudesse ser qualquer coisa como isto: “Tens bué de swag, fiquei com um crushfui stalkearo teu perfil, curtia tua cena, quero que sejas a minha BITCH.”
Para a maioria de nós, à excepção dos termos bué, de origem angolana que significa “muito”, e de curtirque se tornou um sinónimo de “gostar”, as outras palavras requerem tradução. Vamos a isso:
– Crush: é uma palavra inglesa que, em sentido literal, significa esmagamento, compressão ou aperto. Porém, em sentido figurado, denota a paixão súbita ou paixoneta. A palavra alberga uma intensidade variável: ter um crushpor alguém pode significar que se sente atracção, que se tem um interesse romântico ou que se está apaixonado.
– Swag: teve origem como sigla para da expressão secretly we are gay(somos homossexuais em segredo), que terá começado a ser usada na década de sessenta por prisioneiros homossexuais. Segundo consta, a palavra começou a popularizar-se no rap americano, através de Jay-Z. Dez anos mais tarde, em 2011, swagentra para a gíria adolescente com o sentido de ter estilo, ter atitude, ser bonito ou vestir-se bem. Ao visitar as páginas do Facebook “Adolescentes com swag” ou “Adolescentes mais que perfeitos” ficamos esclarecidos. Ter swagimplica usar roupas das marcas da moda, vestir-se bem, ser-se bonito e, last but not least, saber posar para as fotos que depois serão colocadas nas redes sociais. (Esta violência da imagem que os jovens exercem sobre si próprios merece um pensamento aturado. Fica prometido um artigo sobre o tema para depois do verão).
– Stalkear: é um estrangeirismo que tem origem no verbo inglês “to stalk”, que significa perseguir. Embora na vida real a perseguição seja um acto criminoso, não é este o sentido da palavra na gíria adolescente. Eles referem-se ao mundo virtual, a seguiralguém no Facebookou no Instagram, ou noutra qualquer rede social, de forma constante. Como facilmente se depreende, alguém por quem se tem um crushé alvo frequente de stalkeadas.
– Bitch: em inglês designa uma cadela ou qualquer outro animal do género feminino. Contudo, a sua utilização é frequentemente depreciativa, como insulto pretende referir-se a uma prostituta. Porém, BITCH entrou para a gíria adolescente como sigla para Beautiful, Intelligent, Talented, Charming and Hot (Bonita, Inteligente, Talentosa, Charmosa e Sexy). Obviamente, apesar de se utilizar o referente do acrónimo, a conotação original está lá e é conhecida, conferindo um travo irreverente e, quanto a mim, desagradável, à expressão. Porém, há que convir que embora de um modo muito diferente ao do Cântico dos Cânticos, a comparação com a natureza está lá e é assim trazida para a linguagem amorosa.
O filósofo francês Bachelard no seu livro A Poética do Espaçodiz-nos que “as palavras são casas com porão e sótão. O sentido comum reside no rés do chão, sempre pronto para o comércio com o exterior, no mesmo nível dos outros, desse transeunte que nunca é um sonhador.” É a linguagem da utilidade, da sobrevivência, do quotidiano. Porém, a palavra-casa de Bachelard tem vários pisos “subir a escada é abstrair, descer ao porão é sonhar”. Já o escritor português Gonçalo M. Tavares no seu livro Atlas da Imaginaçãodiz-nos que “Devemos olhar para a linguagem como se olha para um objecto — para uma mesa, por exemplo — e ver, por vezes, a linguagem de baixo para cima, de modo respeitoso, de cima para baixo, de modo altivo; observar depois um perfil da palavra, depois o outro; ver os sapatos da palavrae o seu chapéu, a sua nuca e o seu rosto. Porque pensar também é mudar de posição relativamente à própria linguagem. Não olhar sempre da mesma maneirapara as palavras”. Precisamente, é isto que fazem os adolescentes ao criarem a sua gíria própria, um meio de comunicação que é simultaneamente linguagem secreta, ininteligível para o mundo adulto, e marcador da sua identidade.
A linguagem está viva e em constante mutação, assim também os géneros literários e as correntes de pensamento. No século passado os romances de cavalaria deram lugar ao D. Quixotede Cervantes. Numa época de tanta possibilidade de correcção da imagem fotográfica, de tantos filtros no Tic Toce afins, de tantas pernas de deusa, abdominais marcados e lábios com botox, talvez valha a pena recordar o Amor Impossíveldo poeta espanhol Jesus Águàdo pela sua Gorda, que aqui traduzo:
“Como uma criança a uma roda
levava-a rebolando a todo o lado.
Nunca lhe chamei gorda. Chamava-lhe
meu pequeno planeta expulso do céu,
meu hambúrguer duplo, minha baleia.
Eu não era o namorado dela, mas um alienígena
que vinha do espaço para a colocar em órbita,
ou uma família faminta numa tarde de domingo,
ou Capitão Ahab. Às vezes explodíamos
de gozo, e a minha botija de açúcar deixava-me
magoado e feliz como um mergulhador mordido
pelo seu próprio traje de mergulho. Uma tarde ao chegar
a uma rua íngreme empurrei-a
sem calcular as consequências
e ela saiu a rodar da minha vida.”
Inscrições para o Café Filosófico [email protected]
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico