Foram necessários cinco meses de contatos para conseguir falar com um dos responsáveis máximos pelo fabrico da vacina da Oxford/AstraZeneca no Brasil, Marco Krieger, vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Krieger explica ao Expresso porque é que acredita que aquele será a melhor agente de imunização contra o novo coronavírus no mundo.
Biólogo, filho de um geneticista, Krieger participou nas negociações para a constituição da parceira entre a Universidade de Oxford e a farmacêutica britânica AstraZeneca para produzir no Brasil a vacina que deverá imunizar já no próximo ano cerca de 130 milhões de brasileiros. À espera da aprovação formal da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o equivalente do Infarmed em Portugal, a farmacêutica brasileira Fiocruz vai produzir a vacina no complexo industrial de Bio-Manguinhos, uma das regiões mais pobres da cidade do Rio de Janeiro. Se tudo correr como o planeado, até ao fim de fevereiro estarão prontas 30 milhões de doses.
Ainda neste domingo, o jornal britânico “The Telegraph” anunciava que a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca começará a ser aplicada no Reino Unido já na próxima segunda-feira, 4 de janeiro. Citando fonte do governo de Boris Johnson, o jornal avançava ainda que a vacinação será em larga escala e deverá ocorrer até em estádios de futebol. A Comissão Europeia assinou um contrato com o consórcio para assegurar a aquisição de 300 milhões de doses desta vacina, 6,9 milhões das quais deverão chegar a Portugal assim que estiver finalizado todo o processo de aprovação das entidades reguladoras.
Mais barata e mais fácil de armazenar, esta vacina recorre a uma técnica completamente distinta da da vacina da Pfizer, que começou a ser administrada este dominho aos profissionais de saúde em Portugal. Desenvolvida com a tecnologia vetor-viral, usa o adenovírus (vírus da gripe) de chimpanzés, que, depois de manipulado geneticamente, recebe o gene da proteína “S” do SARS CoV-2 e que, quando introduzido na pessoa vacinada, desencadeia uma resposta imunológica específica para esta proteína, gerando anticorpos contra o coronavírus.
Qual é o papel da Fiocruz no fabrico da vacina Oxford/AstraZeneca?
Somos o maior produtor brasileiro de vacinas e a Fiocruz é uma instituição totalmente pública, ligada ao Ministério da Saúde, que assumiu um papel muito importante no combate à pandemia, em várias frentes, desde o diagnóstico à pesquisa de novos tratamentos, aos processos de imunização. Este é o terceiro surto de coronavírus nos últimos 20 anos, depois do SARS e do MERS, e por isso já estávamos a acompanhar iniciativas de preparação do enfrentamento de uma pandemia, que sabíamos que iria surgir e que propunham novas plataformas de resposta rápida.
O que está a dizer é que estas vacinas não surgiram de repente?
Sim, havia já uma tentativa de antecipação e, logo no primeiro semestre, percebemos que tinham começado os estudos clínicos, cerca de 100 dias depois da disponibilização do modelo genético. Nós sabíamos que precisaríamos de participar nestas iniciativas. Também sabíamos que um dos maiores desafios seria justamente a capacidade de produção de vacinas para todo o mundo e que, como o Brasil tem uma densidade populacional muito alta, não conseguiríamos fazer uma aquisição no mercado, que não teria produto para todos. Então, como somos um grande produtor, pensámos em unir essa nossa capacidade de produção, para termos vacinas o mais cedo possível. Nós vamos precisar de 400 milhões de doses para o Brasil em 2021, mais 10% do que a maior iniciativa de produção de vacinas terá. Assim, precisávamos de transferir esta tecnologia e procurámos quem estaria disponível para negociar connosco e qual seria a tecnologia em que poderíamos auxiliar a produção. Porque não temos um parque industrial capaz para algumas das novas tecnologias, como o das vacinas de RNA. Mas a plataforma de Oxford é muito mais próxima do nosso modelo de produção, de transporte e de armazenamento, o que pesou muito na nossa decisão.
Então, foram bater à porta dos fabricantes, dizendo: “vocês precisam da nossa capacidade de produção e nós precisamos da vossa tecnologia”?
Na verdade, foi o que aconteceu. E não só com a AstraZeneca. E tomámos a decisão pela que alcançou a maior pontuação, que foi a vacina Oxford, e fizemos um acordo para a produção local, recebendo a tecnologia deles.
Só para o mercado brasileiro?
Na primeira fase, será 100% dedicada ao mercado brasileiro. Nós não atuamos no mercado exportador normal; exportamos para 74 países, mas através de organismos como a Unicef ou da OMS. Não entregamos diretamente nem a países nem a empresas. Mas, quando tivermos suprido as necessidades do Brasil, iremos nos unir ao esforço mundial de produção para disponibilizar mais doses da vacina.
Portugal não vai receber vacinas produzidas no Brasil?
Não. O nosso foco é atender a população brasileira. Vamos conseguir produzir 200 milhões de doses. E, como o regime é de duas doses, sozinhos não vamos conseguir fornecer toda a vacina de que o país necessita.
A partir de 2022 vão sair do Brasil?
Sim.
O investimento que tiveram de fazer foi todo público?
Sim, mas o nosso acordo tem duas fases. Na primeira fazemos o processamento final, que é a formulação, envazamento e controlo de qualidade, que começará em janeiro. Na segunda fase, a partir de março, começamos também a produzir o princípio ativo farmacêutico no Brasil. Nós fizemos uma encomenda tecnológica que prevê o recebimento de 100 milhões de doses, que não é a vacina pronta. No segundo semestre, esta produção nacional começará a chegar ao mercado brasileiro. Também tivemos o apoio da iniciativa privada do Brasil, de cerca de 20,5 milhões de dólares, para a aquisição de alguns equipamentos.
Na primeira fase da pandemia, o Brasil ficou negativamente marcado pelos elevados números de contágio e morte. Essa vossa ação como produtores da vacina vem ilibar a imagem do país no cenário internacional?
O Brasil tem um grande programa de vacinação, internacionalmente reconhecido. A Fiocruz tem 120 anos, o que equivale a 500 anos em Portugal. É verdade que o Brasil enfrentou um cenário político complexo, como aconteceu com outros países, mas do ponto de vista técnico, temos algumas fortalezas que vão permitir ao Brasil estar numa posição privilegiada neste segundo momento de enfrentamento da pandemia. A primeira fase foi marcada pelas difíceis situações sociais que caracterizam o Brasil e que tornam difícil fazer uma contenção, com regiões muito pobres e com alta densidade populacional, habitações pequenas e com muitas pessoas. É muito difícil fazer isolamento social. É preciso explicar que o Brasil lidou tão mal com a doença porque um dos fatores determinantes para impedir o contagio é lavar as mãos, mas 40% das casas brasileiras em algumas cidades não têm saneamento básico. Era difícil fazer o isolamento, mas conseguimos segurar a situação por alguns meses para que o sistema de saúde se preparasse, comprasse ventiladores e máscaras, que não tínhamos. Somos um país com grandes desigualdades, mas fizemos o achatamento da curva. De certa forma, o índice de mortalidade do Brasil é inferior ao de alguns países da Europa, se considerado o número de mortes por cem mil habitantes. E é surpreendente porque somos muito mais pobres, temos muitos menos hospitais. Mas esta dinâmica reprimida era insustentável por muito tempo, porque as pessoas têm de trabalhar, além das questões emocionais, porque as pessoas aqui não conseguem viver isoladas. Além de termos tido de lidar com algumas políticas controversas. Em relação às vacinas, temos uma competência de produção em larga escala. Anualmente aplicamos 300 milhões de doses de vacinas e poucos países vão estar tão bem preparados para assimilar esse esforço.
A vacina deveria ser obrigatória?
A tradição de aceitação da população das nossas vacinas é muito alta, sobretudo da população infantil, com mais de 90% de adesão. Esse movimento antivacina que ocorreu em vários países foi até agora pouco importante no Brasil, embora tenha vindo a crescer, mas essa é uma discussão não técnica. Vamos ter de fazer campanhas, mas a obrigatoriedade policial não vai resolver o problema.
A gestão da pandemia foi politizada? Afetou o trabalho técnico?
Não tivemos tempo de pensar na política, enquanto buscávamos soluções. O nosso processo foi inédito, investimos recursos num produto que não estava ainda desenvolvido e precisámos do apoio do Congresso e até do poder judiciário. E sempre tivemos este apoio. Assumimos o risco tecnológico, mas não o risco político de fazer alguma coisa fora da lei, porque o risco de não fazer nada e o Brasil ficar sem vacina era maior.
Esta decisão de produzir as vacinas afasta o Brasil de situações como a do continente africano, de ficar à espera de que estas sejam disponibilizadas?
Sim, e vamos estar numa posição igual ou superior à da Europa, dos Estados Unidos ou do Canadá. Vamos estar muito próximos de termos duas vacinas logo no primeiro ano, fazendo um investimento bem menor. O nosso compromisso é com a equidade do acesso a todos. Mas vamos priorizar os mais vulneráveis, com risco de desenvolver doença grave. A nossa meta é conseguir colocar o Brasil no primeiro ano ao lado de países com a vacinação massiva.
Quais são os vossos grupos mais vulneráveis?
Vamos iniciar a vacinação pelos profissionais de saúde e, neste mesmo momento, também dos idosos com mais de 75 anos e dos indígenas. E depois o programa vai avançando, conforme as idades forem diminuindo.
A Fiocruz participou nesta hierarquização?
Não, participámos apenas como investigadores do grupo que foi chamado pelo Ministério da Saúde para definir os grupos prioritários.
Durante algum tempo houve uma grande expectativa em relação à vossa vacina, mas a divulgação da eficácia foi conturbada. Qual é realmente a eficácia da vossa vacina?
É preciso sublinhar que estamos a ver uma revolução no mundo das vacinas, com as de terceira geração, que não usam o patógeno nem o antígeno dele, mas a informação genética do patógeno. O desafio de fazer tudo num período muito curto foi enorme e essa divulgação da eficácia é muito impactante. As tecnologias ainda vão evoluir muito nos próximos dois anos, mas o nível de resposta já é muito completo, não só com os anticorpos, mas com a componente celular. A vacina de Oxford conseguiu produzir uma resposta nos idosos igual à dos jovens, o que é muito raro e muito animador. Os ensaios clínicos com a nossa vacina em macacos revelaram também que tinha impedido o desenvolvimento da doença. O que ainda não sabemos é se a vacina impede a transmissão do vírus. Na verdade, o objetivo era impedir o desenvolvimento de doença grave, para impedir a rutura dos sistemas de saúde. Mas essas vacinas são como crianças prematuras, nasceram de oito meses, e os estudos ainda estão aprimorando a questão das doses. O estudo de fase um começou a 23 de abril, o de fase dois menos de um mês depois e o de fase três a 23 de junho. A avaliação da resposta imune foi avaliada em três meses. Foi o que influenciou os resultados de eficácia da nossa vacina.
Dito isto, qual a eficácia da vossa vacina?
No Brasil foi 70%, mas nos dados gerais 65% das pessoas ficaram protegidas da doença em 21 dias após a inoculação de apenas uma dose. As outras vacinas precisam de duas doses. As metodologias de verificação de eficácia também foram diferentes, com Oxford a fazer testes de diagnóstico (PCR), que identificavam os casos sintomáticos e os assintomáticos, enquanto as outras vacinas só observavam os sintomáticos. Daí a acreditar que a nossa vacina é a melhor. Também tivemos menos casos de efeitos secundários graves. Eu sou um grande defensor das autoridades sanitárias, as vacinas são os produtos mais seguros, são muito avaliadas. Na Pfizer, houve 10% de casos de doença severa, com a nossa vacina não houve nenhuma hospitalização. São dados publicados. Sobretudo, temos uma eficácia superior em 20% à exigida pela OMS, que é de 50%. Não tenho dúvida que, conjugada com a facilidade de armazenamento e de transporte, a nossa vacina terá um grande protagonismo no enfrentamento da pandemia no mundo. A eficácia não é o único parâmetro de avaliação da importância da vacina na saúde pública.
Um país como Portugal poderia produzir a vossa vacina?
Sim, poderia. E essa visão de saúde pública é uma parte bonita do nosso projeto.
Até julho de 2021 a vacina será distribuída sem lucro para o fabricante?
Sim, é uma vacina a preço de custo. E custa no Brasil um terço das vacinas mais baratas.
Uma fuga de informação avançou com 12 euros por dose da vacina da Pfizer. A vossa está calculada em cerca de três euros. Está correto?
Sim. E a da Moderna ainda é mais cara, cerca de 18 euros. No Brasil teremos ganho de escala da produção, até porque depois da pandemia teremos de pagar os direitos pela utilização da vacina. Mas não temos problemas em pagá-los.
Mas o que é “acabar a pandemia”?
Não se pensava que a pandemia iria durar tanto tempo. Será algo que terá de ser revisto no contrato feito ainda em março. Nós já pedimos para reavaliar esse elemento. As vacinas são produtos que nós tomamos, não porque estamos doentes, mas para evitar a doença, e o que os fabricantes pensaram foi que a pandemia acabava e as pessoas continuariam a vacinar-se para não ficarem doentes. Nós estamos a pagar o sucesso das vacinas, porque agora as pessoas acham que não precisam de tomar mais porque veem as doenças erradicadas.
Tem orgulho no vosso trabalho?
Muito, estamos cansados, mas estávamos preparados tecnicamente, apesar do furacão que passou sobre o Brasil. Somos o laboratório de referência da OMS para os vírus respiratórios na América Latina. Nós queremos vacinas para todos.
Vai vacinar-se?
Claro! Posso vacinar-me no primeiro grupo, dos profissionais de saúde, mas a minha família toda também se quer vacinar. Não sei se não vou esperar por eles, mas é crime sanitário não seguir as regras.
Quando atingirá o Brasil a imunidade de grupo?
Acredito que rapidamente, por volta de junho ou julho. Com 100 milhões de brasileiros vacinados, mais quem já ficou doente. A partir de maio já vamos ver os efeitos desta imunização. Na Europa e nos Estados Unidos, vamos ver alguma melhoria a partir de abril.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso