Partimos do princípio que os religiosos lidam com crenças, e que toda a sua actividade se fundamenta na fé. Os cientistas, pelo contrário, lidam com factos empíricos e com raciocínios lógicos. Alan Wallace, autor do livro The Taboo of Subjectivity(O Tabu da Subjectividade) diz-nos que “esse é um mito adorável mas nunca foi verdade”.
Wallace aponta para uma obviedade constantemente ignorada: não é possível obter uma educação científica se não tiver confiança nos seus antecessores, nos seus professores, nos professores dos seus professores, e assim por diante. É impossível testar tudo! Nós acreditamos ou, dito de outro modo, temos fé nos cientistas que nos precederam.
Em prol da cientificidade os dados empíricos têm sempre a última palavra e não há lugar para dogmas, teorias religiosas ou afirmações a priori, isto é, afirmações que não provenham da experiência. Porém, a ciência progrediu através de uma esteira ideológica — o materialismo científico — que, por sua vez, incorpora uma série de postulados a priori. Concentrar-nos-emos hoje no rei destes postulados: a objectividade.
O materialismo científico está crivado de suposições decorrentes dos dualismos absolutos. Recordemos, como exemplo, o posicionamento do filósofo francês René Descartes (1596-1650) que postula uma separação radical entre res cogitans(a substância pensante), e res extensa(a matéria), que, por sua vez, dá lugar ao dualismo entre entre sujeito e objeto. Rapidamente se julgou que somente o mundo material objetivo pode aspirar à cientificidade. Como consequência, apenas os fenómenos físicos e seus atributos passaram a ser considerados reais, por objectivos, em detrimento dos fenómenos mentais subjetivos.
Os filósofos empiristas britânicos John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776) consideravam que todo o conhecimento provinha da experiência. A mente era uma espécie de “tábua rasa” na qual os sentidos iam deixando as suas impressões. O filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753), idealista, foi um acérrimo opositor do empirismo dominante na sua época. O seu ponto de partida é um argumento relativamente simples apresentado em Princípios: “é uma opinião estranhamente prevalecente entre os homens, que casas, montanhas, rios e, numa palavra, todos os objetos sensíveis têm uma existência natural ou real, independente de serem percebidos pelo entendimento. (…) o que são os objetos mencionados senão as coisas que percebemos pelos sentidos, e o que percebemos além de nossas próprias ideias ou sensações; e não é totalmente repugnante que qualquer um desses ou qualquer combinação deles deva existir independentemente da percepção?”
Este conflito entre empiristas e racionalistas acaba por ser resolvido pelo apriorismo proposto pelo filósofo alemão Emmanuel Kant (1724-1804) através da sua “Revolução Copernicana”. Na Crítica da Razão Pura Kantdiz-nos o seguinte: “Se a intuição tivesse de se guiar pela natureza dos objectos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori, se, pelo contrario, o objecto (enquanto objecto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade”. Kant esclarece que jamais será possível obter um conhecimento absoluto e independente do modode conhecer: “a nossa representação das coisas, tal como nos são dadas, não se regula por estas consideradas como ‘coisas em si’, mas são esses objectos, como fenómenos, que se regulam pelo nosso modo de representação”.
Utilizando metaforicamente a linguagem informática da actualidade poderíamos dizer o seguinte: o nosso cérebro possui um determinado softwareque obviamente condiciona o modocomo os dados são apreendidos. É impossível sabermos como são os dados “em si”, independentes da forma como nós os apreendemos — à “coisa em si” Kant chamou númeno, referindo-se ao que as coisas seriam independentemente de quem as observa ou capta — aos dados recebidos com o nosso software cerebral Kant chamou fenómeno. A possibilidade do conhecimento científico, bem como os seus limites ficaram assim estabelecidos a partir do séc. XVIII: podemos estudar cientificamente o fenómeno.
Na filosofia dualística e mecânica que dominou o surgimento da ciência moderna, a natureza não é apenas vista como desprovida de consciência, mas também objectivada a ponto de estar totalmente divorciada da experiência perceptiva. A experiência consciente foi efectivamente removida da natureza e, portanto, do domínio objectivo da ciência. Aderindo aos princípios do materialismo científico, a ciência veio a ser equipada com meios cada vez mais sofisticados de explorar processos físicos objectivos; mas não houve um desenvolvimento correspondente dos meios para explorar os processos cognitivos subjectivos.
No início do século XX, psicólogos e académicos mudaram o foco da sua investigação dos estados subjectivos de consciência para o estudo objectivo do comportamento. O modo tradicional de purgar a subjectividade do mundo natural voltou no final dos anos 1950, com o surgimento da psicologia cognitiva. A mente passou a ser considerada uma propriedade do cérebro.
O neurocientista português António Damásio (1944) no seu livro O Erro de Descartespublicado em 1995 toma o quadro de Rembrandt A lição de anatomia do Dr. Tulp, onde se disseca um cadáver, para exemplificar o extraordinário progresso científico que então se alcançou. Antes da dissecação de cadáveres o interior do corpo era tabu. Desde então o cérebro passou a ser o grande tabu. Com o nascimento das neurociências e o avançar da tecnologia que permitiu scannerscerebrais e imagiologia do cérebro vivo, bem como a localização espacial de funções do foro psíquico/espiritual, como os juízos éticos, ficou demonstrado o tal erro em que incorria Descartes ao separar radicalmente a substância material da substância pensante. Damásio diz-nos: “A alma respira através do corpo, e o sofrimento, quer comece no corpo ou numa imagem mental, acontece na carne”. A investigação do neurocientista português continuou a avançar e em 2010 foi publicado O Livro da Consciência. Aí se explica que numa certa região do tronco cerebral, entre o córtex cerebral e a espinal medula, estão alojados todos os dispositivos de regulação vital do corpo. É ainda possível determinar com precisão uma subárea desta região que, se for danificada, provoca o estado de coma, ou o estado vegetativo, isto é, a nossa mente desaparece, a nossa consciência extingue-se. Porém, a localização neurofisiológica da mente/consciência não nos elucida sobre o seu funcionamento.
Com mais de um século de investigação psicológica e cerca de meio século de progresso nas neurociências, até mesmo a maioria dos defensores do cientificismo reconhece que a ciência ainda não forneceu uma explicação inteligível sobre a natureza da consciência. Por seu lado, o materialismo científico erigiu um tabu contra a investigação científica dos fenómenos mentais subjectivos e tudo fez para prevenir que a perspectiva subjectiva de alguém pudesse, eventualmente, contaminar a ciência. Não existe nenhum aparelho para aceder à mente humana e não confiamos na nossa própria percepção por ser subjectiva. Vivemos sob o dogma de que tudo aquilo que é subjectivo não pode ser científico, ignorando os milhares de anos de treino mental que existe no oriente e que permite reduplicar experiências desta natureza. Erradicámos a consciência da ciência e transformámos a mente humana no grande tabu!
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico