A União Europeia assemelha-se a uma peça de teatro que já foi encenada e representada várias vezes. A comunicação social apropria-se dela para fazer espetáculo mediático e a política partidária usa e abusa dela para ensaiar tática política. Nada de novo, portanto. Digamos que se repete o ciclo da Páscoa, feito de paixão e ressurreição. Assim é, também, com a União Europeia.
É certo, há muito desapontamento em relação ao funcionamento das instituições em Bruxelas, mas quanto mais dramáticos forem os nossos pronunciamentos acerca da ineficácia das instituições europeias, mais dificuldades criamos ao seu processo de tomada de decisão, em especial, quando vaticinamos, amiúde, o fim anunciado da União Europeia. Além do mais, o populismo antieuropeísta espreita oportunisticamente enquanto procura tirar partido do nosso compreensível europessimismo.
A contingência é um dado recorrente da história europeia
A contingência é um dado recorrente da história europeia. No atual contexto, e face ao risco sistémico da economia europeia e das economias nacionais, a política económica da União Europeia não pode ficar refém de escolas de pensamento, de posições dogmáticas nacionais, de populismos bacocos, de estatutos e privilégios das instituições, mas, também, por maioria de razão, de ocorrências graves como a atual, sob pena de pôr em risco não apenas a saúde da economia europeia mas, também, das economias mais frágeis da União, cuja equação política atual é estruturalmente incompatível com a situação vigente que é de moeda única sem união económica e orçamental e sem política monetária comum.
Conhecemos há muito o bloqueio estrutural da União Europeia. Ela confia num estado regulatório de baixa intensidade orçamental e elevada normatividade institucional assente em muitas entidades não-eletivas de natureza intergovernamental. Todavia, também já sabemos que a União Europeia só progride se for fortemente pressionada do exterior por acontecimentos graves. Por isso, perante a pandemia do covid19 e a gravidade das ocorrências nesta altura, o momento é chegado de a União Europeia fazer prova de vida mais uma vez, sob pena de colapsar perante a indiferença absoluta dos cidadãos europeus.
Importa lembrar, porém, que o Banco Central Europeu (compra de ativos), a Comissão Europeia (suspensão das regras do pacto de estabilidade) e o MEE, mecanismo europeu de estabilidade, (financiamento extraordinário) já deram sinais inequívocos de que estão atentos a esta conjuntura tão excecional. Mas a dúvida sistemática permanece. Todas estas medidas geram um endividamento nacional extraordinário que se tornará irremediavelmente recessivo um dia mais tarde. Este é o momento politicamente mais avisado para substituir as dívidas nacionais por dívida pública europeia. Infelizmente, não creio que a tríade europeia – Conselho Europeu, Parlamento Europeu e Comissão – e os seus líderes atuais tenham poder político e energia carismática suficientes para acrescentar valor político relevante ao projeto europeu nesta altura. Oxalá eu esteja redondamente enganado.
A geopolítica atual da União Europeia
De forma breve, a construção europeia passou por quatro fases. A primeira fase entre 1947 e 1957 é a fase heróica, de inspiração federal, que culminou com a construção da comunidade europeia do carvão e do aço (CECA) no início dos anos cinquenta. A segunda fase entre 1957 (tratado de Roma) e 1989 (queda do muro de Berlim) é a fase da prosperidade económica, mas, também, da guerra fria e do mundo bipolar. A terceira fase entre 1989 e 2005 (tratado constitucional) é a fase mais voluntarista e neo-institucional, que concretiza o grande alargamento ao leste europeu, mas que termina com o chumbo do tratado constitucional. A quarta fase entre 2005 e 2017 é a fase do tratado de Lisboa, da grande crise de 2008, das primaveras árabes, da crise dos refugiados, dos programas de resgate e do terrorismo internacional, uma acumulação de linhas de fratura que conduziu à situação que hoje vivemos.
O último período da história política europeia começou, ainda, no ano 2016 com a fratura atlântica – o referendo britânico e a eleição de Trump – e tem continuação no Brexit, na crise do multilateralismo e agora a crise provocada pelo covid 19 que também tem implicações muito sérias no plano geopolítico. Este período é deveras paradoxal. A política europeia não gosta, geralmente, de geopolítica, mas é o que aí vem. Nesta matéria,o mapa da geopolítica europeia apresenta-se do seguinte modo: no norte da Europa, Putin e a Rússia ensaiam o regresso à política das áreas de influência do velho império soviético; a leste, o Grande Médio Oriente anuncia uma intensificação do conflito xiita versus sunita para lá da política turca autoritária do Presidente Erdogan; a sul, mantêm-se os estados falhados do mediterrâneo e a crise dos refugiados alarga-se até à região do Sahel e, finalmente, para rematar esta “tragédia dos comuns” temos na fachada atlântica as hesitações sobre oBrexit, os imponderáveis da Trumpoliticse, agora, as ondas de choque do covid 19.
A primeira constatação é simples, a União Europeia não tem política externa de segurança e defesa para uma agenda tão sobrecarregada. Por outro lado, no plano interno, cresce o “núcleo iliberal” no interior da União Europeia e pela primeira vez foi acionado o artigo 7º do Tratado da União Europeia que condena um Estado membro por violação reiterada de direitos e regras fundamentais do estado de direito democrático.
A segunda constatação é o compasso de espera em que se encontra o anunciado impulso reformista da política europeia: os “cinco cenários” de Jean Claude Junckerjá lá vão, as propostas de Emmanuel Macronaguardam melhores dias, as propostas da Comissão para completar a UEM marcam passo, o diretório franco-alemão sofre de uma espécie de fadiga institucional europeia. A explosão do covid 19 é, nesta sequência histórica, e mais uma vez, o tal cisne negro que faz mover o gigante adormecido?
Do Eurogrupo (9 de abril) ao Conselho Europeu (23 de abril)
As primeiras reações da Comissão Europeia ao covid 19 foram quase imediatas e muito significativas, ou seja, tratando-se de um evento exterior à responsabilidade económica e financeira dos Estados membros a resposta e as consequências não seriam submetidas à condicionalidade das regras do pacto de estabilidade e crescimento. Assim, no Eurogrupo do passado dia 9 de abril foram propostas três redes de segurança, na linguagem de Bruxelas, para os Estados (MEE), os trabalhadores (SURE) e as empresas (BEI), num total de 540 MM euros. E foi ainda feita uma referência à criação de um fundo para a recuperação económica.
Foram estas as propostas que o Conselho Europeu aprovou no passado dia 23 de abril.
No caso do MEE o único requisito para ter acesso a esta linha de crédito é que os Estados-membros da Zona Euro se comprometam a usar esta linha para financiar, a nível nacional, os custos diretos e indiretos relacionados com os cuidados de saúde, a cura e a prevenção relacionada com a crise do covid-19. Na conferência de imprensa, o presidente do Eurogrupo fez questão de dizer que esta não é uma definição apertada, abrindo a porta a diferentes interpretações sobre os fins desta linha de crédito.
O dinheiro disponível do MEE para os países será até 2% do PIB de cada Estado-membro, o que resultará num total de 240 mil milhões de euros. O principal objetivo desta linha de crédito será evitar uma repetição da crise das dívidas soberanas, assim que a dívida pública dos países começar a disparar face à dimensão da queda do PIB e do aumento do défice. Contudo, este valor emprestado pelo MEE a juros baixos é visto por vários economistas como um valor pequeno para aquilo que pode vir a ser o impacto económico desta pandemia na Zona Euro.
A segunda rede de segurança criada pela Comissão Europeia e aprovada pelo Conselho chama-se SURE e o seu objetivo é criar uma camada adicional de proteção ao emprego que os Estados-membros terão à sua disposição. São 100 mil milhões de euros que este programa temporário vai ter à disposição dos países, também através de empréstimos.
A terceira rede de segurança é dedicada às empresas e vem do Banco Europeu de Investimento (BEI). A iniciativa do BEI passa pela criação de um fundo pan-europeu de garantias de 25 mil milhões de euros que deverá alavancar 200 mil milhões de euros de financiamento para as empresas europeias, com um especial foco nas PME, através dos bancos de fomento nacionais.
O Conselho Europeu de 23 de abril aprovou estas três redes de segurança e, também, um fundo de recuperação económica e solicitou à Comissão Europeia que até 6 de maio apresente os detalhes técnicos e operacionais destes quatro instrumentos. Em aberto ficaram, porém, aspetos politicamente cruciais que aqui alinhamos:
– Não sabemos qual a dimensão da queda do PIB nacional e europeu no final de 2020,
– Não sabemos ainda qual será o crescimento do orçamento europeu face à queda do PIB,
– Não sabemos ainda qual a latitude e âmbito das intervenções abrangidas,
– Não sabemos qual a nova condicionalidade associada,
– Não sabemos ainda qual o crescimento do teto de recursos próprios do orçamento,
– Não sabemos ainda quais são os montantes finais dos quatro instrumentos,
– Não sabemos ainda quais as garantias dos Estados associadas aos instrumentos,
– Não sabemos ainda qual é o mixde financiamento entre subvenções e empréstimos,
– Não sabemos ainda qual a chave de repartição pelos Estados membros,
– Não sabemos ainda o timing e o calendário associados aos quatro instrumentos.
Sabemos, porém, que não haverá novas transferências dos Estados membros para o orçamento europeu e, no que diz respeito ao aspeto mais crítico, os eurobonds, sabemos que o Conselho Europeu deliberou, ao abrigo do artigo 122º do tratado de funcionamento da União, uma emissão extraordinária de dívida europeia por iniciativa da Comissão Europeia, tendo em vista o financiamento do fundo de recuperação económica. Essa dívida europeia será, muito provavelmente, acoplada ao orçamento europeu e processada aos Estados membros através de uma chave de repartição ainda a definir, mas que passará, pelo menos em parte, pela lógica dos atuais fundos estruturais.
Tudo isto significa que se torna imperioso aprovar a breve trecho o Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027, desta vez com carácter de urgência e com um volume de recursos que poderá ir até aos 2% do RNB europeu nos próximos anos, de modo a alavancar o esforço de recuperação que temos pela frente.
Notas Finais
A primeira nota, para lá da excecionalidade da política financeira europeia, diz respeito aosriscos políticos que precisam de ser acautelados para evitar a balcanização da política europeia. O primeiro risco político reporta-se aos efeitos do Brexitdurante o ano de 2020. Parece-me sensato o adiamento para 2021, não obstante a teimosia britânica em sair até ao final do ano. O Reino Unido é um parceiro privilegiado e mesmo fora da União essa parceria deve ser abordada com moderação e bom senso. O segundo risco político relaciona-se com a teoria da “Europa a várias velocidades”, no que diz respeito, por exemplo, à Europa do mercado único digital, da moeda única, da segurança e defesa e imigração. A perceção imediata, sobretudo para os países do leste europeu e, em especial, o grupo de Visegrado, é a de “uma teoria dos clubes” percecionada por eles como discriminatória. O terceiro risco tem a ver com as relações transatlânticas, a crise do multilateralismo ocidental e a reestruturação das organizações internacionais do chamado “mundo ocidental”. O quarto risco tem a ver com as movimentações politico-partidárias na Europa. Não gostaria de assistir a uma rutura do diretório franco-alemão depois da saída da chanceler Merkel. O último risco tem a ver com o impacto do covid 19 e uma pós-pandemia assimétrica. Em todos os casos, a política europeia deve ser conduzida com muita moderação e usada em benefício próprio para reforço da sua coesão interna.
A segunda nota é de esperança política no projeto europeu. As deliberações do Conselho Europeu de 23 de abril deixaram, apesar de tudo, a porta entreaberta para novos compromissos politicos mais à frente. Não sei qual será o figurino institucional para a união política europeia no período pós-pandemia, todavia, se a recuperação económica for assimétrica e implicar austeridade mais à frente, teremos graves fraturas não apenas no mercado interno europeu, mas, sobretudo,na legitimidade política europeia que se desacreditarácompletamente aos olhos dos cidadãos europeus. Julgo que uma abordagem política pela via de um governo dos “bens comuns europeus” podia ser útil e conveniente nesta fase do projeto europeu. A terminar, deixo aqui a minha proposta para uma 3ª via unionista da construção europeia e para um governo dos “bens comuns europeus”:
– Um Plano Delors para a recuperação económica da Europa (uma referência merecida),
– Uma procuradoria europeia para a evasão e fraude fiscais,
– Uma proposta europeia para a revisão dos recursos próprios orçamentais,
– Uma nova arquitetura para completar a zona euro, em matéria monetária e orçamental,
– Um mecanismo europeu para a gestão das dívidas soberanas e europeia,
– Um mecanismo europeu para os grandes riscos e o combate às alterações climáticas,
– Uma nova arquitetura para a Europa da Segurança e Defesa,
– Um mecanismo europeu para a promoção das redes de regiões e cidades europeias,
– Um mecanismo europeu para promoção da sociedade digital e a economia colaborativa,
– Um mecanismo europeu reforçado para a cooperação e desenvolvimento.
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