Vivemos na era do progresso tecnológico, com constantes promessas de inovação, de sustentabilidade e de um futuro brilhante. Os carros são elétricos, as casas são inteligentes, os diagnósticos médicos são precoces e as prateleiras dos supermercados estão mais cheias do que nunca. Somos mais rápidos, mais conectados e mais eficientes. Mas, por baixo deste verniz de avanço paira uma pergunta inquietante: será que estamos realmente a progredir ou apenas a iludir-nos com uma versão conveniente do progresso?
Mobilidade sustentável? Quando o progresso parece poluir por outros caminhos…
Tomemos como exemplo os tão celebrados carros elétricos. Dizem-nos que são a solução para as alterações climáticas, que vão salvar o planeta e tornar a mobilidade sustentável. Mas, a verdade é que, por de trás do brilho das baterias de lítio e da complexidade dos componentes eletrónicos, parece haver uma realidade menos reluzente.
O verdadeiro progresso não se mede apenas por avanços tecnológicos, mas pela capacidade de construir um futuro onde a natureza é respeitada, a justiça social é uma realidade e a vida, em todas as suas formas, é celebrada e valorizada, acima da comodidadee
A produção destes veículos exige toneladas de minerais, extraídos de minas, que destroem ecossistemas, exploram trabalhadores e esgotam recursos não renováveis. Além disso, a eletrónica avançada, o maior número de peças e o complexo processo de reciclagem aumentam a sua pegada de carbono, tornando-os poluentes e exigentes em recursos durante toda a vida útil — desde a produção até ao seu fim, quando se tornam resíduos difíceis de gerir. A pegada de carbono associada à produção, transporte e eliminação destes componentes atravessa continentes e carrega consigo rios de injustiças ambientais e sociais. Não é irónico que, para salvar o planeta, precisemos de o destruir um pouco mais? Poderemos falar em progresso quando apenas substituímos uma poluição por outra, menos visível e mais fácil de ignorar? Será que a promessa de um futuro verde não esconde, na verdade, um incentivo ao consumo?
Lar digital? Quando o conforto tecnológico aumenta a pegada ambiental…
As nossas casas estão mais automatizadas do que nunca. Janelas que se abrem sozinhas, fogões que cozinham sem intervenção, aspiradores que limpam a casa autonomamente, televisões que dispensam comandos manuais, lâmpadas que acendem com um simples comando de voz… Cada avanço promete comodidade e eficiência, mas com que consequências? Materiais mais diversificados significam mais processos industriais, maior extração de recursos e mais resíduos. A energia consumida por estas “casas inteligentes” aumenta e a dependência tecnológica cresce. E quando estes dispositivos falham ou ficam obsoletos, tornam-se rapidamente lixo eletrónico – um dos problemas ambientais mais negligenciados e perigosos. Reparar nem pensar: muitos destes equipamentos são projetados de forma a dificultar a reparação ou tornam-se rapidamente incompatíveis com tecnologias mais recentes, perpetuando o ciclo de consumo e desperdício. Será progresso sacrificar o planeta para ganhar alguns minutos de comodidade? A casa do futuro parece estar a construir-se sobre os escombros ambientais do presente… Progresso alimentar: abundância para uns, escassez para outros…
Produzimos mais comida do que nunca, impulsionados por técnicas de cultivo intensivo, viveiros superlotados e inovações tecnológicas que aumentam a eficiência da produção. Temos até um arranha-céus dedicado à criação de animais – um símbolo da nossa procura incessante por aumentar a produção. Tudo em nome da eficiência e da abundância. Mas, abundância para quem? Enquanto uns têm mais do que conseguem consumir, outros sobrevivem com o mínimo, ou quase nada. Milhões de toneladas de alimentos vão para o lixo todos os anos – o mundo desperdiça mais de 1 bilhão de refeições por dia. Supermercados e restaurantes livram-se de comida, a qual poderia alimentar aqueles que lutam diariamente contra a fome. A lógica parece simples: é mais barato deitar fora do que distribuir.
Ainda se lembra de quando a comida era toda vendida a granel? Comprava-se apenas a quantidade necessária de cada alimento. Além de se gastar menos dinheiro, evitava-se que a comida se estragasse em casa. Hoje, a abundância excessiva e o embalamento massivo tornaram-se a norma, mas as consequências são visíveis no desperdício de recursos e no impacto ambiental.
Será que alimentar os seres humanos exige realmente sacrificar ecossistemas, explorar trabalhadores e desconsiderar o sofrimento animal, quando, na verdade, poderíamos combater o desperdício que agrava a fome e otimizar os recursos que já produzimos?
O Planeta veste o lixo da moda: estilo para uns, desperdício para todos…
Há lixeiras de roupa em pleno deserto do Atacama, no Chile, onde, anualmente, cerca de 60 mil toneladas de vestuário não vendido ou rejeitado é acumulado. Este cenário, um reflexo da fast fashion e do consumo excessivo, é surreal: um mar de tecidos a apodrecer sob o sol, a libertar químicos nocivos para o solo e o ar. Cada peça de roupa sintética demora centenas de anos a decompor-se (materiais como poliéster, um derivado do petróleo, pode levar até 200 anos para se decompor), libertando microplásticos pelo caminho. Sabia que a produção de uma simples peça de algodão consome uma quantidade absurda de água? Uma única t-shirt de algodão pode exigir até 2700 litros de água, para ser produzida. E isto numa época em que a escassez de água já afeta milhões de pessoas. O progresso na moda não deveria ser apenas sobre estilo, conforto e inovação tecnológica. Deveria haver um foco em sustentabilidade, promovendo a produção de roupas duráveis com materiais recicláveis ou biodegradáveis, aliada a um consumo consciente que valorize peças de qualidade em vez da quantidade. Além disso, é essencial garantir a ética social na indústria têxtil, assegurando condições de trabalho dignas para todos os envolvidos. Enquanto a moda for sinónimo de desperdício insustentável, estaremos apenas a vestir o planeta com uma mentira costurada de plástico e exploração.
Gestão de Resíduos e Reciclagem: quando o ciclo se fecha, mas o lixo fica…
Prometem-nos que reciclar é a solução milagrosa para a nossa cultura descartável, que separar plásticos, metais e vidros nos absolve de qualquer culpa ambiental. Mas será mesmo progresso quando a reciclagem serve mais para aliviar consciências, do que para salvar o planeta? A verdade é que apenas uma fração dos resíduos é realmente reciclada: segundo um relatório da Greenpeace, em 2021, apenas cerca de 6% do plástico – que inclui tudo, desde garrafas de plástico a sacos de soro intravenoso – produzidos nos E.U.A. foi reciclado. E o resto? Acaba em aterros, incinerado ou, pior, a viajar para países em desenvolvimento, transformando as suas terras em depósitos tóxicos. A tão aclamada economia circular muitas vezes não passa de uma espiral ilusória, na qual o lixo continua a acumular-se, só que longe dos nossos olhos. Estamos mesmo a fechar o ciclo ou apenas a mascarar um problema que se recusa a desaparecer?
Turismo de massas: quando o progresso ameaça o que torna os destinos especiais…
Chamam-lhe “boom turístico” e celebram-no como progresso económico. Mas o turismo de massas é, muitas vezes, uma sombra disfarçada de desenvolvimento. Cidades, antes autênticas, transformaram-se em parques temáticos, para satisfazer a selfie do dia. Vemos as ruas cheias, mas de passos apressados, que, inúmeras vezes, consomem experiências instantâneas e descartam a cultura local, como se fosse um copo de plástico. Veneza afunda-se (50.000 moradores no centro histórico e mais de 15 milhões de turistas, anualmente), em Barcelona expulsa-se (cerca de 170.000 visitantes diários) e Lisboa começa a não se reconhecer ao espelho (há mais alojamento local do que casas para habitação, no centro histórico). Os residentes locais são desalojados para abrir espaço ao alojamento local. Os centros históricos, que deveriam ser o coração das comunidades, tornam-se zonas de “check-in” e “check-out”. O progresso do turismo deveria enriquecer a vida local, mas só enriquece os bolsos de alguns. Milhões de deslocações aéreas por ano garantem que a pegada de carbono do setor é tão leve quanto uma bota de chumbo. Se este é o progresso que celebramos, estamos a “engolir” a nossa própria identidade cultural e a descartar lixo planetário. Progresso seria um turismo consciente, que respeita as pessoas e os lugares. Não deveríamos ser meros figurantes no cenário das férias alheias.
Energias Renováveis: energia limpa, mas com o planeta mais sujo…
Apresentam-se como o farol de esperança para um futuro sustentável — solar, eólica e hidrogénio verde prometem livrar-nos da dependência dos combustíveis fósseis e mitigar as alterações climáticas. Mas será progresso quando a promessa de energia limpa vem embrulhada em realidades menos sustentáveis? A produção de painéis solares, turbinas e baterias exige a extração de minerais raros, devastando ecossistemas e explorando trabalhadores em países já sacrificados. E quando a vida útil destes equipamentos termina, onde os depositamos? Em face da rápida evolução do setor das energias alternativas, a reciclagem é ineficiente e toneladas de lixo tecnológico começam a acumular-se, longe dos nossos olhos. Por mais verdes que pareçam, até as energias renováveis escondem uma pegada de carbono e um rastro de destruição. Estamos a construir um futuro sustentável ou apenas a maquilhar de verde uma economia que continua a devorar o planeta?
Inteligência Artificial: quando o progresso é comprometedor…
Chamam-lhe Inteligência Artificial (IA), mas talvez devêssemos começar a questionar qual o impacto da sua inteligência. A cada avanço, aplaudimos a IA por nos facilitar a vida, mas esquecemo-nos de uma coisa: ao delegarmos nela, estamos a atrofiar o órgão mais poderoso que temos — o cérebro. Empregos são substituídos por algoritmos, diagnósticos por probabilidades, decisões por linhas de código… Os humanos passam de criadores a consumidores passivos e depois perguntamo-nos porque começa a haver uma crise de criatividade e pensamento crítico. Quando a IA começar a decidir se um currículo passa ou se alguém é culpado num julgamento com base em “big data”, quem realmente está a comandar? Consideramos progresso quando um algoritmo escreve um poema ou cria uma pintura. Mas será isso arte, ou apenas um espelho frio do que já fizemos antes? E que tal a dependência? Quantos de nós ainda conseguem encontrar um caminho sem o GPS ou lembrar-se de um facto sem pedir ajuda à IA? Estamos a ensinar as máquinas a pensar, enquanto nós esquecemos. Progresso seria usar a IA para amplificar as nossas capacidades, não para as substituir. Progresso seria manter a IA como uma ferramenta, não como um substituto. Se entregarmos as rédeas às máquinas, não teremos apenas perdido o controlo — teremos perdido o propósito de sermos humanos.
Medicina: onde o progresso faz sentido…
Na medicina, o progresso tem sido inegavelmente positivo. Diagnósticos precoces e precisos, tratamentos inovadores e cirurgias robóticas estão a salvar milhões de vidas. A investigação médica está a abrir portas para curas outrora inimagináveis. Este é o tipo de progresso que merece ser celebrado e incentivado aquele que valoriza a vida e procura melhorar a condição humana.
Contudo, como em muitas áreas, o avanço na medicina também traz consigo uma sombra: a desigualdade no acesso. Enquanto uns têm direito aos tratamentos mais sofisticados, medicamentos de última geração e terapias experimentais, outros não têm sequer acesso a cuidados médicos básicos. Essa disparidade cria um sistema em que o progresso é um privilégio e não uma realidade acessível a todos. Além disso, o progresso não deve ser medido apenas pela capacidade de salvar vidas, mas também pela equidade com que essas vidas são cuidadas. O que fazer quando avanços médicos, como terapias genéticas ou tratamentos inovadores, são inacessíveis para as camadas mais vulneráveis da sociedade?
Estaremos certos sobre o que significa progresso?
Com a previsão de que poderemos chegar a aproximadamente 9,41 mil milhões, em 2050, segundo estimativas das Nações Unidas, o cenário atual, no qual se prioriza o crescimento a qualquer custo, preocupa-nos seriamente. Talvez seja tempo de redefinir o conceito de progresso. De olhar para além das inovações tecnológicas e questionar o impacto real das nossas escolhas. Progresso sem ética, sem sustentabilidade e sem humanidade não deveria ser considerado progresso — na verdade, não é mais do que um retrocesso disfarçado.
O verdadeiro progresso não se mede apenas por avanços tecnológicos, mas pela capacidade de construir um futuro onde a natureza é respeitada, a justiça social é uma realidade e a vida, em todas as suas formas, é celebrada e valorizada, acima da comodidade.
Enquanto não formos capazes de alcançar esse equilíbrio, estaremos apenas a avançar cegamente para um abismo tecnológico, com a bandeira do progresso na mão e a consciência tranquila por termos feito tudo em nome da evolução.
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