John Donne foi um escritor inglês, nascido no século XVI. Devemos-lhe a frase, ainda hoje muitas vezes repetida: “Nenhum homem é uma ilha”. Donne sabia qualquer coisa sobre perder e sobre estar só. O seu pai morreu quando tinha apenas 4 anos, perdeu 5 filhos antes da maioridade e mais tarde perde a mulher (com quem casara inicialmente em segredo) quando esta tinha 33 anos. Foi durante um período de doença que Donne decidiu escrever sobre o tema da conexão humana. Sobre como nenhuma pessoa pode ser inteiramente só e independente. Seríamos todos parte de um continente.
A espécie humana é eminentemente social. Pertencemos a famílias, comunidades, países e muitos de nós acarinham a ideia de pertencer a algo ainda mais vasto como a humanidade. Alguns investigadores estimam que tenha sido há 52 milhões de anos que os nossos antepassados evoluíram para um modo de viver coletivo, o único que nos permitiria chegar onde chegámos enquanto espécie. Hoje, ser pessoa é pertencer. Talvez por isso, muitas das grandes invenções da humanidade – imprensa, telefone, transportes, rádio, televisão, internet – sejam recursos que nos permitem estar mais ligados e próximos. Num certo sentido, podemos ousar dizer que atingimos o ponto em que a sociedade se transcendeu: já não dependemos sequer da presença física para estarmos ligados. Ainda assim, há uma abundância de solidão entre nós. O que nos falta?
Uma epidemia de solidão
Há vários aspetos que distinguem as diferentes culturas humanas. Uma distinção comum faz-se entre culturas mais individualistas ou mais coletivistas. As primeiras tendem a promover um ideal de autonomia, autossuficiência e de culto da identidade e da particularidade. As segundas tendem a valorizar mais os laços sociais, as relações familiares e os sentimentos de pertença. Em 2017, uma equipa de investigadores norte-americanos analisou as tendências emergentes de 5 décadas de dados entre 78 países no que respeita a valores e práticas individualistas/coletivistas. Os resultados sugerem que apesar de ainda haver culturas que se caracterizam mais por um ou por outro estilo de organização, o individualismo tem vindo a ganhar terreno, década após década, à escala global.
Os efeitos desta mudança na forma de nos relacionarmos com os outros parecem cada vez mais evidentes. Recentemente, um relatório oficial do organismo responsável pela saúde pública dos Estados Unidos referiu-se à solidão e ao isolamento social como uma epidemia. Ao mesmo tempo, a Organização Mundial de Saúde alerta para as perigosas consequências da solidão: um aumento de até 50% do risco de desenvolver demência, até 30% mais risco de desenvolvimento de doença cardiovascular e 25% de aumento do risco de morte prematura. Riscos comparáveis a outros notáveis “suspeitos do costume” como tabagismo, consumo excessivo de álcool ou obesidade. Por outras palavras, a solidão pode matar. As estatísticas preocupam ainda mais quando consideramos os dados de prevalência. Em 2022, a Comissão Europeia divulgou um relatório que revelava que mais de um terço dos europeus sentia solidão pelo menos algumas vezes e 13% reportava sentir-se só na maior parte do tempo.
Um sentimento que vem de dentro
A solidão pode ser um sentimento difícil de definir e também por isso difícil de identificar. Pode existir na presença de outras pessoas, mas pode também não ser sentido por alguém que vive só. É um sentimento pessoal, mais profundo, de falta de ligação aos outros, seja porque as relações pessoais são escassas ou simplesmente não suficientemente satisfatórias. Pode acontecer a qualquer pessoa, em qualquer etapa da vida, desde o jovem que se sente só num recreio cheio de outros jovens aos quais não se consegue ligar, até ao adulto mais velho que vive só e isolado.
No Reino Unido, em 2018, foi criado pela primeira vez um ministério para a solidão. Entre algumas medidas propostas contava-se a possibilidade de prescrever atividades comunitárias e de voluntariado ou a parceria com a Royal Mail para que os trabalhadores postais pudessem colaborar no apoio às pessoas mais isoladas, durante as suas rondas. Experiências como esta poderão contribuir para informar estratégias a replicar internacionalmente. Em Portugal, os indicadores de isolamento e solidão são preocupantes e a necessidade de agir de forma concertada é clara. No entanto, também é uma responsabilidade individual contribuir para combater esta epidemia no dia-a-dia, cuidando de nós e dos outros: procurar tempo para escutar, para desenvolver relações de proximidade, para participar em atividades da comunidade, tomar a iniciativa de contactar amigos e familiares ou simplesmente cumprimentar vizinhos ou fazer algo por um desconhecido.
A solidão tem o poder de se alimentar a si mesma: quanto mais sós, maior é a vontade de continuarmos sós. Combatê-la pode envolver pequenos gestos que se podem tornar rotinas; trocar o hábito da solidão pelo hábito da companhia e da atenção. Porque não amanhã oferecer um café, tocar à porta de alguém, tocar ao telefone de alguém?
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