Era uma vez… Um gigante com pés de loiça, asas de prata e cabeça de leão. Uma cidade microscópica no buraco de uma agulha, que se desfaz e refaz ao passar de cada linha. Uma floresta ao contrário, de raízes celestes e papagaios a rasar o chão.
Por mais absurda que seja a imagem, o provável é que as tenha conseguido encenar na sua mente sem esforço nem vontade. Essa é a faculdade de ver com os olhos da mente a que chamamos de imaginação. É a capacidade de recuperar mentalmente a sensação de um objeto que não está presente ou que pode até não existir. E assim poderá imaginar com a mesma destreza o rosto de um amigo que não vê há muitos anos ou um bando de alienígenas na chegada à Terra.
Haverá limites para o que se pode imaginar?
O filósofo britânico David Hume dizia que nada é mais livre que a imaginação. Contudo, a mesma imaginação que tudo baralha, transforma, soma e divide, não poderá ir mais além das peças que lhe são dadas pelos sentidos. De facto, poderá imaginar com facilidade um peixe de todas as cores, mas não conseguirá imaginar um peixe pintado de uma cor que nunca viu. De resto, no plano da extensão, a imaginação é virtualmente ilimitada. Pode conceber um objeto singular ou o mundo por inteiro. Exemplo disso são os paracosmos, universos imaginários que podem ter geografias, línguas e histórias próprias. Habitualmente este termo designa mundos ficcionais, construídos na infância ou juventude, mas que podem persistir até à idade adulta.
Um dos paracosmos mais conhecidos, Gondal, nasceu do tédio das irmãs Brontë, Emily (autora de “Wuthering Heights”) e Charlotte (autora de “Jane Eyre”). Os primeiros contornos desta saga surgem na juventude, com a chegada de uma caixa de pequenos soldados de brinquedo, mas pensa-se que o jogo terá continuado por mais de duas décadas. A prosa deste mundo imaginário era escrita em letras miúdas, por vezes em velhos papéis de jornal ou revistas e, apesar de pouco restar desta história, sabe-se que se tratava de uma saga intricada, com personagens complexas e uma geografia devidamente cartografada.
Imaginar para quê?
A imaginação assim considerada pode parecer uma extravagância. Por que razão terá o intelecto humano caminhado para desenvolver a capacidade de simular aquilo que existe ou não existe – imagens, cheiros, sabores, sons – com tamanho detalhe e complexidade? A explicação mais óbvia para a imaginação passa pela vantagem evolutiva que esta confere.
A imaginação orientada para a realidade terá permitido aos primeiros Homo perspetivarem possíveis riscos e oportunidades do contexto e planearem possíveis cursos de ação. Há, no entanto, uma forma de imaginação que se cruza com a fantasia e é essa que terá dado origem aos paracosmos das irmãs Brontë, mas também aos cenários surreais de Dali ou às histórias de absurdo de Kafka. Sabe-se que há cerca de 30.000 anos atrás surgiram os primeiros sinais de uma imaginação não apenas orientada para a realidade, mas que pelo contrário foi capaz de dobrar e desafiar as leis do mundo natural. Na gruta de Chauvet, em França, encontra-se, por exemplo, a representação de figuras metamórficas, metade homem-metade bisonte, demonstrando a capacidade de pensar muito para além do que a realidade concreta oferecia.
O despertar de uma nova imaginação
Esta nova capacidade de inventar novos possíveis terá potenciado a criação de expressões de criatividade cumulativamente mais complexas até às diversas formas de arte que conhecemos hoje. Uma das vantagens mais óbvias desta imaginação será a capacidade de gerar novas soluções para um problema, porventura mais eficazes e adaptativas.
No mundo atual, em que a única certeza é a incerteza, a criatividade tem vindo a ser definida como uma competência indispensável para as futuras gerações. Paradoxalmente, a imaginação tem ainda pouco espaço nas escolas, nas universidades e na sociedade. A estabilidade, a exatidão, a resposta certa, continuam a fascinar o pensamento educativo e com isso a pressão para o conformismo, para a convergência e para a autocensura.
A arte, enquanto arena privilegiada – mas certamente não única – para a criatividade, continua a ser secundarizada face às ciências e tecnologias para as quais se espera canalizar as mentes mais brilhantes. E a todos parece pedir-se que se faça mais e se imagine menos, esquecendo que foi a imaginação que nos trouxe até aqui. Tanto aquela que levou à invenção da lâmpada como aquela que serviu para entreter o ócio de duas irmãs, pois a primeira não vive certamente sem a segunda. Seja qual for a forma ou o objetivo, imaginar só pelo gosto de imaginar é preciso.