Imagine se amanhã acordasse como Sísifo. Por ter enganado a morte duas vezes, Zeus forçou-o a um castigo eterno, o de puxar uma imensa pedra encosta acima, para invariavelmente ver a mesma imensa pedra rolar encosta abaixo. À distância, uma imagem tão absurda parece ter quase tudo de onírico e quase nada de realidade. No entanto, quando visto de perto, o mito de Sísifo, que decorou ânforas na Grécia antiga, é também uma imagem franca da modernidade. Quem o percebeu particularmente bem foi o filósofo franco-argelino Albert Camus, que não podia deixar de ver no terrível destino de Sísifo uma representação das vidas tão exaustivamente repetidas nas fábricas e escritórios da sua época.
Poderia Sísifo ter qualidade de vida?
O ensaio de Camus conclui de forma críptica que “é preciso imaginar Sísifo feliz”. Mas como? Entre as várias perspetivas que se conhecem sobre a qualidade de vida, há pelo menos uma em que podemos imaginá-lo de facto. Esta perspetiva implica que se admita radicalmente o seguinte: nada daquilo que fazemos – limpar chaminés, tratar dos enfermos, engraxar sapatos, rezar missas – tem um propósito em si mesmo. São as pessoas que definem o propósito daquilo que fazem.
O raciocínio assim decomposto pode parecer fácil de discordar, no entanto, há algo a retirar daqui sobre a ideia de qualidade de vida. Para muitos, uma vida boa é uma vida com significado ou propósito e, felizmente para todos, é possível encontrar tantos significados quanto pessoas cabazes de os imaginar. De forma resumida, é possível designar três formas segundo as quais o propósito de vida tem sido definido. A primeira respeita a significância ou o sentimento de que a nossa vida importa, a segunda tem que ver com a coerência e com a perceção que as experiências e os papéis que assumimos na vida se encaixam num todo coerente, e a terceira refere-se à perceção de que a vida tem uma direção e que contribui para algo maior que nós próprios. De um modo geral, este sentimento de propósito tende a correlacionar-se com aspetos como a autenticidade, a realização, as virtudes ou o crescimento pessoal.
A vida boa e o dilema da máquina de experiência
Segundo esta perspetiva – chamada “eudaimónica” – a qualidade de vida requer um propósito ou sentido para aquilo que se faz. Existe, no entanto, uma conceção alternativa que entende que a qualidade de vida corresponde pura e simplesmente a uma vida feliz. Esta é a chamada perspetiva “hedónica”, na medida em que repousa maioritariamente sobre aspetos como o prazer e a satisfação. A qualidade mede-se, assim, em função de um equilíbrio, ou antes, de um desequilíbrio útil que favorece a experiência das emoções agradáveis face às emoções desagradáveis. A diferença entre as duas perspetivas aqui enunciadas está em que esta última se ocupa do estar bem, enquanto a primeira se preocupa com o ser bom.
Uma vez que já se imaginou como Sísifo pode agora colocar-se como sujeito de um dilema aproximadamente simétrico: o da máquina de experiência. No seu livro “Anarquia, Estado e Utopia”, o filósofo norte-americano Robert Nozick propõe um cenário em que uma máquina é capaz de recriar em realidade virtual todas as experiências que somos capazes de desejar com um grau de verosimilhança absoluta. Nesta máquina é possível programar todas estas experiências para o resto da vida e sentir plenamente o seu prazer intrínseco. O leitor escolheria viver o resto da vida ligado a esta máquina? Se a intuição de Nozick estiver correta, a sua resposta terá sido não. Ainda que este cenário represente a manifestação plena do prazer (e a supressão da dor), o filósofo entende que a maioria das pessoas declinaria a vida simulada.
Há vida para além do status quo
Este exercício de pensamento pretende demonstrar que o prazer não é um fim único e suficiente. Importam as ações, nas quais participamos e das quais nos apropriamos, e não apenas a experiência delas. As opiniões das “pessoas reais” não são, contudo, tão unanimes como Nozick sugeriu e uma simples reorganização das peças do jogo pode levar a decisões diferentes. Felipe De Brigard, professor da Duke University, procurou demonstrá-lo, com um cenário em que as pessoas estão à partida conectadas à máquina de experiência, decidindo depois se trocariam a simulação pela vida real. Nestas condições, 87% dos participantes recusaram abandonar a ficção quando a alternativa real era uma vida de reclusão numa prisão de alta segurança. Mais surpreendente é que apenas metade das pessoas escolheu desligar-se da máquina mesmo quando no cenário real seriam artistas milionários a residir no Mónaco.
O que De Brigard parece ter encontrado com esta experiência é sobretudo uma evidência do viés esmagador do status quo. Por outras palavras, parece haver um fundo de verdade para a máxima de que vale mais um diabo que se conhece que um que se desconhece. Por outro lado, a recente disrupção das práticas e dos hábitos a que estávamos habituados, na sequência da pandemia, permitiu entrever o que acontece quando se derruba um determinado estado das coisas. Para muitos, isso significou o desembaraço do peso diário de movimentos pendulares nas cidades, mais tempo passado em família ou a prática de formas de autocuidado para as quais não se encontrava vontade ou ocasião. Para alguns também, dissolveram-se barreiras entre trabalho e lazer, avolumaram-se afazeres e adaptações. Conhecidos que são hoje os dois lados da moeda, importa perceber o que pretendemos levar para uma nova organização do tempo, do trabalho e da vida. Nesse debate é necessário assumir que a qualidade de vida não é um detalhe. Não é uma abstração e muito menos uma distração do que verdadeiramente importa.
O grande desafio da nova normalidade será o de garantir que se leva a sério a qualidade de vida das pessoas, a sua dignidade e o seu direito a existir muito para além daquilo que é a sua ocupação ou o seu ofício. Para muitos de nós isto implicará assumir, sem pudor, o direito a uma vida com qualidade, para nós e para os outros. As duas perspetivas que acima se enunciaram a propósito da qualidade de vida aconselham então que desenvolvamos a capacidade de fruir a vida e promover o bem-estar que nos torna sãos, mas que o façamos com propósitos mais amplos de crescimento e de realização pessoal e coletiva.