SAIR DO PAPEL
Do resultado eleitoral esdrúxulo de Março passado, muito se tem dito sobre o grau de insatisfação dos algarvios. Foi uma década de ausência de investimento do Estado em infraestruturas fundamentais, mesmo depois de passado o período da troika. Foi esta sensação de ficar para trás no cotejo com outras partes do território sempre na vanguarda do quinhão orçamental. Uma terra esquecida pelo poder central, com a cumplicidade e o silêncio dos comissários políticos instalados nas cadeirinhas da praxe. Assim se desfez de vez o sonho de uma verdadeira descentralização regional. Foram demasiadas promessas, demasiadas primeiras pedras, power points engalanados, conferências de imprensa para, tudo bem espremido, tudo ficar na mesma como a lesma. Foi a vingança de quem se sente explorado por aquilo que contribui tributariamente para a economia de todos, de Bragança à Ilha do Corvo, e recebe em troca umas esmolas nada generosas, só porque é baixo o seu peso eleitoral no colégio que decide.
A tragédia da zona de Valência é também o resultado de erros urbanísticos iguais a muitos que têm sido cometidos no Algarve
O ser humano é eternamente insatisfeito, isso sabe-se, e vê-se a cada passo. Mas também foi a insatisfação que permitiu os avanços da civilização, da melhoria do bem-estar. Por outro lado, a satisfação incontida gera sofrimento, ansiedade permanente, espírito negativo. É por isso que, mesmo quando algum objectivo é atingido, o prazer torna-se efémero, passageiro, não é usufruído, e cai-se no abismo da insatisfação permanente, embarcando-se facilmente em aventuras que não levam a lado nenhum, para lá de retóricas inflamadas sobre o cerne das preocupações das populações, mas desprovidas de conteúdo ao nível das soluções e dos intérpretes, como foi notoriamente o caso. Num contexto de difícil equilíbrio político, o actual executivo minoritário tem tomado iniciativas que vão na direcção certa, no caminho do resgate do Algarve às garras da insatisfação.
Os resultados da recente Cimeira Luso-Espanhola realizada em Faro foram animadores, acordado que foi avançar para a ponte Alcoutim-Sanlucar, a conduta de água do Guadiana desde o Pomarão à barragem de Odeleite, o estudo da ligação ferroviária Faro-Huelva-Sevilha. De caminho, adjudicou-se a construção da dessalinizadora de Albufeira, uma reserva estratégica de disponibilização de água a partir de fonte inesgotável, pesem alguns inconvenientes ambientais. O novo Hospital Central do Algarve, o Centro Oncológico, cinco novas Unidades de Saúde Familiar tipo C, os investimentos para a concretização do Plano de Eficiência Hídrica, estão na proposta de Orçamento de Estado para 2025, é verdade. São passos positivos e necessários, se o Orçamento passar. O grande desafio é que, por enquanto, estamos ainda no reino do papel.
Este Governo, se durar, só obterá ganho de causa quando os algarvios sentirem que se entrou em fase de obra. Quando as gruas se levantarem no Parque das Cidades, quando os caboucos da dessalinizadora estiverem à vista. Até lá, fica evidente um vazio enorme de interesse político pela outra parte da ordem de trabalhos da Região. Não se ouve nem um pio sobre o urbanismo suicida que está a condicionar todo o futuro do Algarve. Como é possível que não exista um único instrumento de ordenamento revisto e actualizado, apesar da legislação assim o obrigar, já desde 2010, tendo então sido dado um ano e meio no caso dos POOC’s, no máximo (!), para que tal se verificasse. É o que se passa com as áreas protegidas da Costa Vicentina, da Ria Formosa, do Sapal de Castro Marim. Idem aspas para os Planos de Ordenamento da Orla Costeira de Sines/Burgau, Burgau/Vilamoura e Vilamoura/Vila Real de Santo António. Idem aspas para os Planos de Ordenamento das Albufeiras do Arade, da Bravura, do Funcho, de Odeleite e Odelouca. Tal como obsoleto está o Plano Regional de Ordenamento do Território, cujo obsoletismo é a referência com que é suposto estar em curso a revisão dos próprios Planos Directores Municipais. Perante este deserto (intencional?) de regras actualizadas e adequadas a um desenvolvimento equilibrado e sustentado do Algarve, assiste-se a quê? A uma acumulação de compromissos assumidos pelas autarquias por via dos PIP’s (Pedidos de Informação Prévia), ao ressuscitar de alvarás de loteamento fora de prazo por virtude de juristas habilidosos, a aprovações mal explicadas de novas construções como se não houvesse limites para a capacidade de carga. Esta imensa bacia “licenciatória”, está a desaguar numa betonização brutal da faixa litoral de 2 quilómetros do mar adentro.
O inventário desse estendal de comprometimentos, que alguns especialistas estimam em mais 100.000 unidades habitacionais e turísticas, é urgente e obrigatório. Porque ninguém parece preocupado em fazer contas ao impacto sobre infraestruturas ultrapassadas de nível viário, de saneamento básico, e até dos consumos futuros de água, deste meio milhão adicional de potenciais ocupantes. Acresce a tudo isto um surto de construção clandestina, proliferando casas pré-fabricadas e contentores não importa onde, não respeitando regras nenhumas de ordenamento, perante a total passividade das autarquias.
A tragédia da zona de Valência é também o resultado de erros urbanísticos iguais a muitos que têm sido cometidos no Algarve, com linhas de água entupidas com construções em leito de cheia. O que espanta, é a falta de memória, e que se continuem a repetir hoje os erros do passado.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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